sábado, 28 de janeiro de 2012

DICADUCAS

Para ler:



Aperitivo de Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa

I. As chilenitas

Foi um verão fabuloso. Pérez Prado e sua orquestra de 12 professores vieram animar os bailes de carnaval do Clube Terrazas de Mirafl ores e do Lawn Tênis de Lima, houve um campeonato nacional de mambo, na Praça de Acho, com grande sucesso apesar da ameaça do cardeal Juan Gualberto Guevara, o arcebispo de Lima, de excomungar todos os casais participantes, e meu bairro, o Bairro Alegre das ruas miraflorenses Diego Ferré, Juan Fanning e Colón, disputou um torneio de futsal, ciclismo, atletismo e natação contra o bairro da rua San Martín e, naturalmente, ganhamos.

Coisas extraordinárias aconteceram naquele verão de 1950. Cojinoba Lañas se declarou pela primeira vez a uma garota — a ruiva Seminauel — e ela, para surpresa de todo Miraflores, disse que sim. Cojinoba esqueceu que era manco e a partir de então andava pelas ruas estufando o peito feito um Charles Atlas. Tico Tiravante desmanchou com a Ilse e se declarou à Laurita, Víctor Ojeda se declarou à Ilse e desmanchou com a Inge, Juan Barreto se declarou à Inge e desmanchou com a Ilse. Houve tanta recomposição sentimental no bairro que estávamos todos meio zonzos, os namoros se desfaziam e refaziam e, aos sábados, os casais que saíam das festas nem sempre eram os mesmos que tinham entrado. "Que sem-vergonhice!", dizia escandalizada minha tia Alberta, com quem eu morava desde a morte dos meus pais.

As ondas nas praias de Miraflores rebentavam duas vezes, a primeira bem longe, a 200 metros da praia, e os mais valentes de nós iam até lá para descê-las de peito, e deslizávamos uns 100 metros até onde as ondas morriam e se reconstituíam em garbosos movimentos e então estouravam de novo, numa segunda arrebentação que nos empurrava, como navegantes de ondas que éramos, até as pedrinhas da praia.

Naquele verão extraordinário, nas festas de Mirafl ores todo mundo parou de dançar valsas, corridos, blues, boleros e huarachas, porque o mambo arrasou. O mambo, um terremoto que fazia todos os casais infantis, adolescentes e maduros se sacudirem, balançando, pulando e fazendo firulas nas festas do bairro. E certamente acontecia o mesmo fora de Miraflores, para além do mundo e da vida, em Lince, Breña, Chorrillos, ou nos ainda mais exóticos bairros de La Victoria, o centro de Lima, o Rímac e o Porvenir, onde nós, miraflorenses, nunca tínhamos pisado nem pensávamos pisar jamais.

E assim como havíamos passado das valsinhas e huarachas, das sambas e das polcas para o mambo, também passamos dos patins e patinetes para a bicicleta, e alguns, Tato Monje e Tony Espejo por exemplo, para a moto e até mesmo, um ou dois rapazes, para o automóvel, como o grandalhão do bairro, Luchín, que às vezes roubava o Chevrolet conversível do pai e nos levava para dar uma volta pelo cais, de Terrazas até a quebrada de Armendáriz, a cem por hora.

Mas o fato mais notável daquele verão foi a chegada a Mirafl ores, diretamente do Chile, seu distante país, de duas irmãs cuja presença marcante e inconfundível jeito de falar, rapidinho, esquecendo as últimas sílabas das palavras e arrematando as frases com uma exclamação aspirada que soava como um "pueh", deixaram abobalhados todos os miraflorenses que acabavam de trocar as calças curtas pelas compridas. E eu, mais do que qualquer outro.

A mais alta parecia ser mais nova e vice-versa. A mais velha chamava-se Lily e era um pouco mais baixinha que Lucy, que tinha um ano menos. Lily devia estar com 14 ou 15 anos, no máximo, e Lucy, com 13 ou 14. O adjetivo marcante parecia ter sido inventado para elas, mas, sem deixar de sê-lo, Lucy era menos marcante que a irmã, não só porque seu cabelo era menos louro e mais curto e se vestia com menos atrevimento que Lily, mas também porque era mais calada e, na hora de dançar, apesar de também fazer firulas e requebrar a cintura com uma audácia que nenhuma miraflorense se atreveria a assumir, parecia uma garota recatada, inibida e quase insípida em comparação com aquele pião, aquela labareda ao vento, aquele fogo-fátuo que era Lily quando, colocados os discos na vitrola, o mambo explodia e começávamos todos a dançar.

Lily dançava num ritmo saboroso e cheio de graça, sorrindo e cantarolando a letra da canção, erguendo os braços, mostrando os joelhos e balançando a cintura e os ombros de tal maneira que todo o seu corpinho, modelado com tanta malícia e tantas curvas pelas saias e blusas que usava, parecia se encrespar, vibrar e participar do baile dos pés à cabeça. Quem dançava um mambo com ela sempre se saía mal porque, como acompanhá-la sem se atrapalhar no turbilhão endiabrado daquelas pernas e pezinhos saltitantes? Impossível! Você ficava constrangido desde o início, e totalmente consciente de que os olhos de todos os casais estavam concentrados nas façanhas mambeiras de Lily. "Que menina!", indignava-se a tia Alberta, "dança como uma Tongolele, parece uma rumbeira de filme mexicano". "Bem, não vamos esquecer que é chilena", insistia, "e o forte das mulheres desse país não é a virtude".

Eu me apaixonei por Lily feito um bezerro, a forma mais romântica de se apaixonar — também se dizia queimar feito um tição —, e naquele verão inesquecível me declarei três vezes a ela. A primeira, depois da matinê de domingo, no balcão do Ricardo Palma, aquele cinema que ficava no Parque Central de Miraflores, e ela me disse que não, porque ainda era muito nova para ter namorado. A segunda, na pista de patinação inaugurada justamente naquele verão perto do Parque Salazar, e ela também não me aceitou, precisava pensar, porque, por mais que gostasse um pouquinho de mim, seus pais lhe pediram para não arrumar namorado antes de terminar o quarto ano e ela ainda estava no terceiro. E a última, poucos dias antes da grande confusão, no Cream Rica da avenida Larco, enquanto tomávamos um milk-shake de baunilha, e ela, é claro, disse outra vez que não, para que ia dizer que sim se já parecíamos namorados do jeito que estávamos. Não nos colocavam sempre juntos na casa da Marta, quando jogávamos verdade ou conseqüência? Não nos sentávamos juntos na praia de Miraflores? Ela não dançava comigo mais do que com qualquer outro garoto, nas festas? Para que, então, ia dar formalmente um sim se todo Miraflores já nos considerava namorados? Com sua pinta de modelo, olhos escuros e marotos e uma boquinha de lábios carnudos, Lily era a coqueteria em forma de mulher.

"Em você, gosto de tudo", dizia eu. "Mas o melhor é o seu jeitinho de falar." Era engraçada e original, por seu sotaque e sua musicalidade, tão diferentes dos peruanos, e também por certas expressões, palavrinhas e ditados que deixavam nas nuvens os garotos do bairro, tentando adivinhar o que queriam dizer e se não haveria neles algum deboche. Lily ficava o tempo todo falando coisas de duplo sentido, fazendo adivinhas ou contando piadas tão pesadas que deixavam as garotas do bairro vermelhas. "Essas chilenitas são terríveis", sentenciava tia Alberta, tirando e repondo os óculos com seu ar de professora primária, temerosa de que aquelas duas forasteiras desintegrassem a moral miraflorense.

No começo dos anos 50 ainda não havia edifícios em Miraflores, que era um bairro de casinhas de um andar ou às vezes dois, jardins com os infalíveis gerânios, as cidreiras, os louros, as buganvílias, o gramado e as varandas, até onde subiam as madressilvas ou a hera, com cadeiras de balanço onde os moradores esperavam a noite contando fofocas e sentindo o perfume do jasmim. Em alguns jardins havia ceibos espinhosos com fl ores vermelhas e rosadas, e as limpas e retilíneas calçadas tinham pés de magnólia, jacarandás, amoras, e o toque de cor vinha tanto das flores nos jardins como das carrocinhas amarelas dos sorveteiros da D’Onofrio, uniformizados de aventais brancos e bonés pretos, que percorriam as ruas dia e noite anunciando sua presença com uma buzina cujo lento ulular me dava a sensação de um corno bárbaro, uma reminiscência pré-histórica. Ainda se ouviam os pássaros cantando nesse Miraflores em que as famílias cortavam os pinheiros quando as moças chegavam à idade de casar porque, se não o fizessem, as coitadas ficariam solteironas como a minha tia Alberta.

Lily nunca me aceitava, mas o fato é que, tirando essa formalidade, em todo o resto parecíamos namorados. Ficávamos de mãos dadas nas matinês do Ricardo Palma, do Leuro, do Montecarlo e do Colina e, embora não se pudesse dizer que tirávamos sarro na penumbra das platéias, como outros casais mais antigos — tirar sarro era uma fórmula em que cabiam desde beijos anódinos até os chupões lingüísticos e toques impróprios que depois era preciso confessar ao padre, nas primeiras sextas-feiras, como pecados mortais —, Lily me deixava beijá-la, nas bochechas, na beirada das orelhinhas, no canto da boca e, às vezes, por um segundo, juntava seus lábios aos meus e os afastava logo com uma careta melodramática: "Não, não, isso é que não, magrinho." "Você parece um bezerro, magro, você está azul, magro, está derretendo de tanta paixão, magro", caçoavam meus amigos do bairro. Nunca me chamavam pelo meu nome — Ricardo Somocurcio —, era sempre pelo apelido. E não exageravam nem um pouco: eu estava caidinho pela Lily.

Por sua causa, nesse verão troquei socos com Luquen, um dos meus melhores amigos. Num daqueles encontros de garotos e garotas do bairro na esquina de Colón e Diego Ferré, no jardim dos Chacaltana, Luquen, bancando o engraçadinho, disse de repente que as chilenitas eram umas cafonas, porque não eram louras de verdade mas sim oxigenadas, e que, pelas minhas costas, tinham começado a chamá-las em Miraflores de As Cucarachas. Dei-lhe um direto no queixo, do qual ele se esquivou, e fomos resolver o problema a socos na esquina do cais da Reserva, ao lado do barranco. Ficamos sem nos falar uma semana inteira, até que, na festa seguinte, as garotas e garotos do bairro nos fizeram reatar a amizade.

Lily gostava de ir, todos os fins de tarde, a um canto do Parque Salazar fervilhante de palmeiras, copos-de-leite e campainhas, de cujo murinho de tijolos vermelhos contemplávamos toda a baía de Lima como o capitão de um navio contempla o mar na sua torre de comando. Quando o céu estava claro, e juro que nesse verão o céu ficou o tempo todo sem uma nuvem e o sol brilhou em Miraflores sem falhar um dia, divisava-se lá no fundo, nos limites do oceano, o disco vermelho, flamejante, despedindo-se com raios e fogos de artifício enquanto se afogava nas águas do Pacífico. O rostinho de Lily se concentrava com o mesmo fervor com que comungava na missa do meio-dia na igreja do Parque Central, a vista fixa naquela bola ígnea, esperando o instante em que o mar engolisse o último raio para formular o desejo que o astro, ou Deus, materializaria. Eu também pensava num desejo, acreditando mais ou menos que se tornaria realidade. Sempre o mesmo, é claro: que ela finalmente me aceitasse, que nós começássemos a namorar, a tirar sarro, e afinal nos apaixonássemos, ficássemos noivos, casássemos e fôssemos viver em Paris, ricos e felizes.

Desde que me entendo por gente eu sonhava morar em Paris. Provavelmente por culpa do meu pai, daqueles livros de Paul Féval, Júlio Verne, Alexandre Dumas e tantos outros que ele me fez ler antes de morrer no acidente que me deixou órfão. Esses romances encheram a minha cabeça de aventuras e me convenceram de que a vida na França era mais rica, mais alegre, mais bela e mais tudo que em qualquer outro lugar. Por isso, além das minhas aulas de inglês no Instituto Peru-Estados Unidos, consegui que minha tia Alberta me matriculasse na Aliança Francesa da avenida Wilson, onde ia três vezes por semana aprender a língua dos franceses. Apesar de gostar de me divertir com os meus chapas do bairro, eu era bastante caxias, tirava boas notas e adorava idiomas.

Quando meus trocados permitiam, eu convidava Lily para tomar um chá — ainda não estava na moda dizer fazer um lanche — no La Tiendecita Blanca, com sua fachada cor de neve, suas mesinhas e seus toldos nas calçadas, e seus mileumanoitescos doces — os biscoitinhos, os alfajores recheados de manjar branco, os rocamboles! — no cruzamento entre a avenida Larco, a avenida Arequipa e a alameda Ricardo Palma sombreada pelas copas dos altíssimos fícus.

Ir com Lily ao La Tiendecita Blanca tomar um sorvete e comer um pedaço de bolo era uma felicidade quase sempre ofuscada, infelizmente, pela presença de sua irmã Lucy, que eu tinha de carregar também em todas as saídas. Ela fi cava segurando vela sem se incomodar, mas com isso estragava os meus planos e me impedia de conversar a sós com Lily e dizer todas as coisas bonitas que queria murmurar no seu ouvido. Mas, embora nossa conversa, devido à presença de Lucy, precisasse evitar certos assuntos, estar com ela não tinha preço, ver sua cabeleira dançando toda vez que mexia a cabeça, a malícia de seus olhos cor de mel escuro, ouvir seu jeitinho tão diferente de falar, e às vezes espreitar, sem querer, no decote de sua blusa ajustada, o começo dos peitinhos que já despontavam, redondos, com tenros botões e, sem dúvida, firmes e suaves como frutas jovens.

"Não sei o que faço aqui com vocês, segurando vela", se desculpava Lucy, às vezes. Eu mentia: "Que idéia, ficamos felizes com a sua companhia, não é mesmo, Lily?" Lily ria, com um diabinho zombeteiro nas pupilas, e aquela exclamação: "É, puuueh…"

Era um ritual naquele verão dar um passeio pela avenida Pardo, sob a alameda de fícus invadidos por pássaros cantores, entre as casinhas de ambos os lados em cujos jardins e varandas corriam meninos e meninas vigiados por babás de uniforme branco bem engomado. Como era impossível, na presença de Lucy, falar com Lily de tudo o que eu gostaria, levava a conversa para assuntos anódinos: os planos para o futuro, por exemplo, quando, já formado em direito, eu fosse para Paris com um posto diplomático — porque lá, em Paris, é que se vivia, a França era o país da cultura —, ou talvez me dedicasse à política, para ajudar um pouco este pobre Peru a ser grande e próspero de novo, e nesse caso teria de adiar um pouco a viagem à Europa. E elas, o que gostariam de ser, ou de fazer, quando crescessem? Lucy, sensata, tinha objetivos bem precisos: "Antes de mais nada, terminar o colégio. Depois, conseguir um bom emprego, talvez numa loja de discos, deve ser um bocado divertido." Lily pensava numa agência de turismo ou numa companhia de aviação, como aeromoça, se conseguisse convencer os pais, porque assim viajaria de graça pelo mundo inteiro. Ou então, artista de cinema, talvez, mas nunca permitiria que a filmassem de biquíni. Viajar, viajar, conhecer todos os países era o que ela mais queria. "Bem, pelo menos já conhece dois, o Chile e o Peru, o que quer mais", dizia eu. "Compare comigo, que nunca saí de Miraflores."

As coisas que Lily contava de Santiago eram para mim uma antecipação do céu parisiense. Com que inveja eu a ouvia! Lá, ao contrário daqui, não havia pobres nem mendigos nas ruas, os pais deixavam os garotos e garotas ficarem até de manhã em festas onde dançavam cheek to cheek, e nunca se via, como aqui, os velhos, as mães, as tias, espiando os jovens dançarem para dar bronca se passassem dos limites. No Chile, os garotos e garotas podiam entrar em filmes para adulto e, desde os 15 anos, fumavam sem precisar se esconder. Lá a vida era mais divertida que em Lima porque havia mais cinemas, circos, teatros, espetáculos e festas com orquestras, e em Santiago sempre se apresentavam companhias de patinação, de balé e musicais americanos, e os chilenos, em qualquer trabalho que fizessem, ganhavam o dobro ou o triplo do que os peruanos recebiam aqui.

Mas, se era assim, por que então os pais das chilenitas tinham deixado para trás aquele país maravilhoso e vieram para o Peru? Eles não eram ricos, e sim visivelmente pobretões. Para começar, não viviam como nós, garotas e garotos do Bairro Alegre, em casas com mordomos, cozinheiras, faxineiras e jardineiros. Moravam num apartamentinho, de um edifício estreito de três andares, na rua La Esperanza, à altura do restaurante Gambrinus. E em Miraflores daquele tempo, ao contrário do que ocorreria mais tarde, quando começaram a surgir os edifícios e desaparecer as casas, só moravam em apartamentos as pessoas pobres, essa espécie humana diminuída a que — uma verdadeira lástima — as chilenitas pareciam pertencer.

Nunca vi a cara dos seus pais. Elas nunca me levaram, nem a qualquer outro garoto ou garota do bairro, à sua casa. Nunca comemoraram um aniversário, nem deram uma festa, nem nos convidaram para lanchar e brincar, como se tivessem vergonha de mostrar como era modesto o lugar em que viviam. O fato de serem pobres e se envergonharem de tudo o que não tinham me enchia de compaixão, aumentava o meu amor pela chilenita e me infundia propósitos altruístas: "Quando Lily e eu nos casarmos, vamos levar toda a família dela para morar conosco."

Mas meus amigos, e principalmente minhas amigas miraflorenses, suspeitavam do fato de Lucy e Lily não abrirem as portas da sua casa. "Serão tão mortas de fome que não podem sequer dar uma festa?", perguntavam. "Vai ver que não são pobres, e sim pão-duras", tentava explicar Tico Tiravante, piorando as coisas.

De repente os meninos do bairro começaram a falar mal das chilenitas pela maneira como se maquiavam e se vestiam, a caçoar do seu escasso vestuário — todos nós já conhecíamos de cor aquelas sainhas, blusinhas e sandálias que, para disfarçar, combinavam de todas as maneiras possíveis —, e eu as defendia, cheio de santa indignação, aquelas maledicências eram pura inveja, inveja obscena, inveja venenosa, porque as chilenitas nunca tomavam chá-de-cadeira nas festas, todos os meninos faziam fila para dançar com elas — "elas deixam encostar, assim ninguém toma chá-de-cadeira", replicava Laura —, ou porque, nas reuniões no bairro, nos jogos, na praia ou no Parque Salazar, eram sempre o centro das atenções, todos os garotos ficavam à sua volta, ao passo que elas... "Porque são metidas e descaradas e porque com elas vocês se atrevem a contar umas piadas sujas que a gente não deixaria!", contra-atacava Teresita —, e, por último, porque as chilenitas eram bárbaras, modernas, sagazes, e elas, ao contrário, umas frescas, atrasadas, conservadoras, beatas e preconceituosas. "Com muita honra!" respondia Ilse, para provocar.

Mas, apesar de falarem mal delas, as garotas do Bairro Alegre continuavam convidando as duas para as festas e indo em turma com elas às praias de Miraflores, à missa de meio-dia aos domingos, às matinês e às obrigatórias voltas pelo Parque Salazar, do entardecer até a aparição das primeiras estrelas que, naquele verão, brilharam no céu de Lima de janeiro a março sem serem cobertas uma única noite pelas nuvens, tenho absoluta certeza, como acontece nesta cidade em quatro quintos do ano. Andavam com elas porque nós, garotos, pedíamos, e porque, no fundo, as garotas de Miraflores sentiam uma fascinação pelas chilenitas igual à que a cobra tem pelo passarinho ao hipnotizá-lo antes de engoli-lo, o pecador pela santa, o diabo pelo anjo. Invejavam nas forasteiras, vindas daquele país remoto que era o Chile, a liberdade que não tinham de ir a todo e qualquer lugar, e ficar passeando ou dançando até tarde sem precisar pedir para ficar mais um pouquinho sem que o pai, a mãe ou alguma irmã mais velha, ou uma tia, ficasse espionando pelas janelas da festa como e com quem dançavam, ou as levasse para casa porque já era meia-noite, hora em que moça direita não fica dançando nem conversando na rua com homens — isso só faziam as mais marmanjas, as oferecidas e as índias —, têm de estar nas suas casas, deitadas nas suas caminhas, sonhando com os anjinhos. Invejavam as chilenitas por serem tão soltas, dançarem com tanto molejo sem se importar que seus joelhos aparecessem, mexendo os ombros, os peitinhos e a bundinha como nenhuma garota de Miraflores fazia, e também, provavelmente, permitindo liberdades aos meninos que elas nem ousavam imaginar. Mas, se eram assim tão livres, por que Lily e Lucy não queriam ter namorado? Por que rejeitavam todos os que lhes pediam para namorar? Lily não havia recusado só a mim; fez o mesmo com Lalo Molfino e Lucho Claux, e Lucy não aceitou Loyer, Pepe Cánepa e o bonitinho do Julio Bienvenida, o primeiro miraflorense que, antes mesmo de terminar o colégio, ganhou um Volkswagen dos pais quando fez 15 anos. Por que as chilenitas, que eram tão livres, não queriam ter namorado?

Este e outros mistérios relacionados com Lily e Lucy foram inesperadamente esclarecidos no dia 30 de março de 1950, o último daquele verão memorável, durante a festa de Marirosa Álvarez-Calderón, a gordinha fofa. Uma festa que marcaria época e ficaria para sempre na memória de todos os presentes. A casa dos Álvarez-Calderón, na esquina de 28 de Julio e La Paz, era a mais bonita de Miraflores, e talvez do Peru, com seus jardins de árvores altas, suas tipuanas de flores amarelas, suas campainhas, suas roseiras e sua piscina de azulejos. As festas de Marirosa sempre tinham orquestra e um enxame de garçons servindo salgados, canapés, sanduíches, sucos e todo tipo de bebidas não alcoólicas a noite inteira, festas para as quais os convidados se preparavam para entrar no céu. Tudo ia às mil maravilhas até que, com as luzes apagadas, uma centena de garotas e garotos cercou Marirosa e todos cantamos Parabéns pra você e ela soprou e apagou as 15 velinhas do bolo e fizemos fila para lhe dar o indefectível abraço.

Quando chegou a vez de Lily e Lucy abraçá-la, Marirosa, uma gorducha feliz cujos pneus laterais estufavam seu vestido rosa com um grande laço nas costas, depois de beijá-las no rosto arregalou os olhos:

— Vocês são chilenas, certo? Vou apresentá-las à minha tia Adriana. É chilena também, acabou de chegar de Santiago. Venham, venham.

Pegou-as pela mão e as arrastou para dentro da casa, gritando: "Tia Adriana, tia Adriana, tenho uma surpresa para você."

Pela ampla vidraça da janela, um retângulo iluminado que emoldurava um grande salão com uma lareira apagada, paredes com paisagens e retratos a óleo, poltronas, sofás, tapetes e uma dúzia de senhoras e senhores com taças nas mãos, vi Marirosa irromper instantes depois com as chilenitas, e cheguei a divisar, borrada e fugaz, a silhueta de uma senhora muito alta, muito bem arrumada, muito bonita, com um cigarro fumegante na ponta de uma piteira comprida, avançando para cumprimentar suas jovens compatriotas com um sorriso condescendente.

Fui tomar um suco de manga e fumar escondido um Viceroy nas cabines do vestiário da piscina. Lá encontrei Juan Barreto, meu amigo e colega do Colégio Champagnat, que também viera se refugiar naquela solidão para fumar um cigarro. De repente me perguntou:

— Você se incomoda se eu me declarar a Lily, magro? Ele sabia que, apesar das aparências, não éramos namorados, e também — como todo mundo, esclareceu — que eu tinha me declarado três vezes e nas três me dera mal. Respondi que me incomodava sim, e muito, porque, se Lily me rejeitou, foi para fazer um joguinho — no Chile as garotas são assim —, mas na realidade gostava de mim, era como se fôssemos namorados, e além do mais naquela noite mesmo eu já tinha começado a me declarar pela quarta e definitiva vez, e ela estava quase me aceitando quando a entrada do bolo com as 15 velinhas da gorducha fofa nos interrompeu. Mas agora, assim que ela parasse de conversar com a tia da Marirosa, ia finalmente me aceitar e a partir dessa noite seria minha namorada como Deus manda.

— Neste caso, vou ter de me declarar a Lucy — Juan Barreto se resignou. — O problema é que gosto mesmo é da Lily, compadre.

Eu o incentivei a se declarar a Lucy e prometi que faria tudo para ajudar. Ele com Lucy e eu com Lily formaríamos um quarteto genial.

Conversando com Juan Barreto ao lado da piscina, e vendo os casais evoluindo na pista ao som da orquestra dos Irmãos Ormeño — não chegava a ser a de Pérez Prado, mas era muito boa, que trompetes, que tambores —, fumei dois ou três Viceroys. Por que Marirosa tivera a idéia, bem naquele momento, de apresentar sua tia a Lucy e Lily? O que tanto fofocavam? Aquilo estava atrasando o meu plano, diacho. Porque, era mesmo verdade, quando surgiu o bolo com as 15 velinhas, eu estava começando minha quarta — e, tinha certeza, dessa vez bem-sucedida — declaração de amor a Lily, depois de ter convencido a orquestra a tocar "Me gustas", o bolero mais adequado para se declarar às garotas.

Demoraram uma eternidade para voltar. E voltaram transfi guradas: Lucy, muito pálida e com olheiras, parecendo ter visto um fantasma e ainda não ter se recuperado da impressão do outro mundo, e Lily, emburrada, com uma expressão azeda, soltando faíscas pelos olhos, como se aquelas senhoras e senhores grã-finos as tivessem feito passar um mau pedaço lá dentro. Na mesma hora tirei-a para dançar, um daqueles mambos que eram sua especialidade — o Mambo número 5 —, e Lily, eu não podia acreditar, não acertava uma, perdia o ritmo, se distraía, errava, tropeçava, e até mesmo seu gorrinho de marinheiro escorregou, dando-lhe um aspecto um pouco ridículo. Ela nem se preocupou em endireitá-lo. O que havia acontecido?

Quando o Mambo número 5 terminou, sem dúvida toda a festa já sabia, porque a gordinha fofa se encarregara de espalhar. Que satisfação devia ter aquela fofoqueira contando a história, com todos os detalhes, colorindo e exagerando o caso, arregalando os olhos de curiosidade e espanto e felicidade! Que alegria doentia devem ter sentido — que desagravo, que vingança — todas as garotas do bairro, que tanto invejavam aquelas chilenitas recém-chegadas a Miraflores para revolucionar os nossos costumes de garotos que, nesse verão, estávamos recebendo o certificado de adolescentes!

Eu fui o último a saber, quando Lily e Lucy já haviam desaparecido misteriosamente, sem se despedir de Marirosa nem de ninguém — "mordendo o freio de tanta vergonha", sentenciaria a tia Alberta —, e o boato sibilino se espalhara por toda a pista de dança deixando em alvoroço a centena de garotos e garotas que, esquecidos da orquestra, de seus namorados e namoradas, dos sarros e amassos, cochichavam, repetiam, alarmados e exaltados, abrindo uns olhos enormes que fervilhavam cheios de maledicência: "Viu só? Já soube? Escutou? Que coisa! Percebe? Imagina, imagina!" "Não são chilenas! Não, não eram! Pura lorota! Nem eram chilenas nem sabiam nada do Chile! Mentiram! Enganaram! Inventaram tudo! A tia da Marirosa acabou com a festa delas! Que bandidas, que bandidas!"

Eram peruanitas, pronto. Coitadas! Coitadinhas! A tia Adriana, recém-chegada de Santiago, deve ter tido a maior surpresa da vida ao ouvi-las falar com aquele sotaque que nos enganava tão bem mas que ela identificou imediatamente como uma impostura. Como devem ter-se sentido mal as chilenitas quando a tia da gordinha fofa, adivinhando a farsa, começou a perguntar sobre sua família santiaguina, o bairro onde moravam em Santiago, o colégio em que tinham estudado, sobre seus parentes e as amizades de sua família em Santiago, fazendo Lucy e Lily passarem o momento mais amargo de suas curtas vidas, encarniçando-se com elas até que, expulsas da sala, destruídas, espiritual e fisicamente demolidas, proclamou diante de seus parentes e amizades e da atônita Marirosa: "Que chilenitas que nada! Essas meninas jamais puseram os pés em Santiago e são tão chilenas como eu sou tibetana!"

Naquele último dia do verão de 1950 — eu também acabava de fazer 15 anos —, começou para mim a vida real, aquela que discrimina os castelos no ar, miragens e fábulas da crua realidade.

Eu nunca soube muito bem a história completa das falsas chilenitas, nem ninguém mais soube, exceto as próprias, mas ouvi as conjeturas, intrigas, fantasias e supostas revelações que perseguiram por muito tempo, como um rastro de rumores, aquelas chilenitas de mentira, quando elas já tinham deixado de existir — uma maneira de dizer —, porque nunca mais foram convidadas para as festas, nem para os jogos, nem para os chás, nem para as reuniões no bairro. As más línguas diziam que, embora as garotas decentes do Bairro Alegre e de Mirafl ores não as freqüentassem mais, e virassem a cara quando cruzavam com elas na rua, os meninos, rapazes e homens as procuravam às escondidas, como se procuram as piranhas — e o que eram Lily e Lucy, senão duas piranhas de algum bairro como Breña ou El Porvenir que, para ocultar sua origem, tinham passado por estrangeiras para se infiltrar entre as pessoas decentes de Miraflores? — para tirar um sarro, para fazer com elas essas coisas que só as índias e as piranhas deixam fazer.

Depois, imagino, todos foram se esquecendo de Lily e Lucy, porque outras pessoas, outros assuntos vieram substituir essa aventura do último verão da nossa infância. Mas eu não. Não me esqueci, principalmente da Lily. E, embora tenham se passado tantos anos, e Miraflores tenha mudado tanto, assim como também os costumes, e se eclipsaram as barreiras e os preconceitos que antes se manifestavam com insolência, e agora são disfarçados, eu a guardei na memória e às vezes a evoco, para ouvir a risada travessa e o olhar zombeteiro de seus olhos cor de mel escuro, e vê-la se arqueando feito um bambu ao compasso dos mambos. E continuo achando que, apesar de já ter vivido tantos verões, aquele foi o mais fabuloso de todos.

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