segunda-feira, 26 de março de 2012

NUM OCEANO DE CINISMO...



DRIVE E O FIM DO CINISMO
por Ieda Marcondes

Em 1940, no final de O Grande Ditador, Charlie Chaplin fez o seu famoso discurso:
“Nosso conhecimento nos tornou cínicos. Nossa esperteza, severos e cruéis. Pensamos muito e sentimos pouco[…]Mais do que esperteza, precisamos de bondade e gentileza. Sem estas qualidades, a vida será violenta e tudo será em vão.”
São palavras ditas no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas que podem ser facilmente aplicadas em contextos diversos como, por exemplo, o meio intelectual ou acadêmico (nos quais a violência seria de um tipo mais indireto, menos físico, mais verbal) ou, então, o meio político (em que a violência que ocorre em nome da esperteza é de ordem moral, social, etc.). Podemos aplicar tais palavras na forma pela qual levamos nossas próprias vidas, nossas profissões, nossas escolhas. A maioria de nós está imersa em um cinismo avançado; vivemos de ironia e tentativas repetitivas de demonstrar uma esperteza ímpar, não sentimos realmente o que estamos falando, não há coerência interna com o que estamos fazendo, não somos sinceros sequer com nós mesmos, que dirá com os outros. E, assim, nos tornamos violentos; cometemos pequenos e diários atos de violência contra nós mesmos e contra os outros.
Drive é um filme violento (do tipo de violência que destrói crânios e faz uma sujeira terrível), mas trata-se de uma violência redentora. Para salvar aquilo que, em meio a um oceano de cinismo, é para nós o que há de bondade e gentileza, não seremos violentos? Não defenderemos aquilo até as últimas consequências, até a própria morte? E nossa morte não seria uma morte honrosa?
Ryan Gosling, o excelente herói sem nome de Drive (o “driver” ou, simplesmente, “motorista”) dirige carros em cenas elaboradas para filmes de ação durante o dia e, à noite, se disponibiliza como motorista de fuga para várias empreitadas criminosas das quais ele faz questão de se manter mais ou menos desinformado e alheio. Seu mecânico Shannon, interpretado por Bryan Cranston de Breaking Bad, é quem lhe fornece carros insuspeitos, porém envenenados, para que consiga despistar a polícia com habilidade e inteligência. Fora Shannon, o “driver” não possui raízes; não possui família, amigos ou história (por isso, sequer tem nome), mas as coisas começam a mudar quando ele conhece sua vizinha Irene (Carey Mulligan) e seu filho Benicio.
O filme passa um longo e necessário tempo estabelecendo a afeição que surge entre e o motorista e sua vizinha para que, quando ficamos sabendo que seu marido está para ser solto da prisão, possamos sentir tal informação com tristeza pelo novo casal (tudo feito em uma cena lindíssima: o motorista passeando de carro com ela, luzes verdes dos semáforos iluminam seus rostos, ela então conta sobre o seu marido, um farol vermelho, uma parada, um silêncio, um suspense, e um sinal verde novamente). Além disso, é o afeto entre eles que vai colocar todo o resto do filme em ação, até o último minuto.
O retorno do marido de Irene, Standard Gabriel, apresenta um novo problema à trama. Ameaçado por antigos parceiros, ele terá de cometer mais um assalto para sanar uma dívida. O motorista resolve ajudá-lo, mas tudo dá errado e logo ele, sua vizinha e seu filho estarão em risco. O “driver” precisará encontrar todos os criminosos envolvidos (entre eles, Ron Pearlman e Albert Brooks) para garantir não a segurança própria, mas a de Irene e Benicio.
O filme lida com o fim do cinismo porque seu personagem não poderá mais viver da forma que vivia. Agora que ele tem por quem zelar, não poderá, se conseguir salvar Irene e ainda sobreviver, voltar ao crime e colocá-la em risco novamente. Ele aprende que atos têm consequências, que não há verdadeira impunidade. Isso fica claro em uma cena em que um antigo “contratante” do motorista o aborda em um bar, querendo chamá-lo para mais um serviço, e ele reage com raiva, afastando o sujeito. Afinal, são criminosos que estão ameaçando o que ele conheceu, enfim, como o que há de melhor na vida (o amor, a família) e ele simplesmente não pode mais ser um deles ou sequer tolerá-los.
Drive é um filme maravilhoso, tanto sob o ponto de vista estético (há cenas lindíssimas em que a luz serve para pontuar momentos importantes, como o farol na cena do confronto com o personagem de Ron Pearlman na praia) quanto sob o ponto de vista de seu conteúdo. É um filme revigorante, raro, pois não só fala de um fenômeno escasso hoje em dia (o fim do cinismo) como trata-se de um filme de ação de gosto refinado; uma experiência que se repetirá poucas vezes.

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