quarta-feira, 15 de setembro de 2010

DIE MUSIC...





MÚSICA DAS ESTRELAS, MÚSICA DA TERRA.

Nos intervalos de banho, preparativos, beliscadas de comida, telefonemas, etc., antes que a noite se tornasse madura para procurar os amigos e o prazer, ouvi naqueles anos todo, em discos ou rádio, tudo o que Bach, Mozart e Beethoven haviam composto. Ainda não tinha descoberto, ou melhor, não me sentia particularmente atraído por Wagner, paixão futura. Debussy e Ravel eram para mim mais um instrumento do incomparável Walter Gieseking ao piano. Fiquei profundamente chocado ao saber que ele vestira a camisa da SA nazista. Certamente para agradar, por falta de caráter, e não por ideologia, pois quem tira de Debussy e Ravel aqueles sons nada tem em comum com as brutalidades dos alemães dos 1930 e 1940.
Não tenho educação formal em música. Não aprendi a ler partituras, como Bernard Shaw, a quem o crítico A. B. Walter encontrou, no Museu Britânico, estudando alternadamente O capital, de Marx, e a partitura de Tristão e Isolda? Sim, Tristão morre afogado nas pudendas de Isolda, a que não pode resistir, traindo sua família, sua honra de cavaleiro, a si próprio, enlouquecendo com um desejo que só faz crescer e cuja única saída é a morte. Isolda preside sobre o seu desfecho, ninando-o com uma canção de amor e morte (Liebestod). A que aberração burguesa, ou aristocrática, Marx atribuiria esse destino? Nem convém pensar. Há uma insolência irritante no esplendor dessa música, como na carta cheia de vanglória que Wagner enviou a Liszt quando completou a ópera (apertado por três mulheres, de que queria se esconder), mas nos rendemos, apesar de tudo.
Mas tenho, quero crer, ouvido, e um senso de estrutura musical. A arquitetura de Parsifal, de Wagner, que permanece intoxicante em sua penetração e ressonância na minha alma, ainda que os cantores entoassem o catálogo telefônico, é que me fez vez pela primeira vez a importância de Wagner. Wagner é cosa nostra, tão doido e neurótico quanto nós, ou até mais. Uma amiga minha me disse ouvindo essa música: “Essa é a felicidade que eu nunca tive”.
Música é minha única dúvida espiritual. Vem só de seres humanos o que Bach, Mozart e Wagner criaram? Ou há forças espirituais falando por meio deles? Uma pergunta de titia, me digo, sóbrio e a seco, mas quando os ouço penso em origem extra-humana, na graça que perdemos aos sermos expulsos do paraíso, ao nos alienarmos dos animais e coisas, e que cessa de nos perturbar, pois no integramos de novo durante as horas em que ouvimos a grande música. E Beethoven. Ao ouvir Das Heilige Dankesang, o quarteto de ação de graças, ao menos duvidamos, enquanto persiste a música, que nossa origem seja tão ignominiosa e nosso destino o oblívio. Não consigo ouvir o concerto de violino de Beethoven sem cantá-lo e por isso desisti de ir a salas de concertos, preferindo ouvi-lo em casa. Beethoven é nosso semelhante. Fomos feitos à sua semelhança. A era moderna começa com ele. Bach e Mozart podiam imaginar mundos de certeza que não nos são mais acessíveis. Wittgenstein sentia em Beethoven a expressão do silêncio que pregava para o que não pudesse ser provado logicamente. Mais perto do meu fim, certamente, do que do meu começo, não vejo por que não soltar minha imaginação.
Virginia Woolf dizia que a natureza humana mudou em 1912. Uma grande frase, mas que significava apenas que Virginia, menina, achava a cozinheira da família Stephen, de seu pai, uma figura majestosa e distante (senti o mesmo pela cozinheira do meu avô, quando garoto). Em 1912, Virginia, mulher feita, a cozinheira começou a dar palpites políticos. As classes baixas desemudeceram no palco da história. Quando muito, no passado, guinchavam incoerentemente e seus portadores faziam tropel. Agora, uma nova era Meineke, o historiador alemão, diz que, desde 1890, as massas (palavra cunhada por Mussolini) eram a preocupação suprema da classe dirigente, aristocrática. Pode ser, mas para nós e Virginia, de classes intermediárias, aconteceu muito mais tarde.
Ouvindo Bach e Mozart, admiro mas percebo que não é comigo. Beethoven é. Um amigo, sentado no meu agradável escritório na Rodolfo (cacófato) Dantas, falando só comigo. Senti na carne os nobres estertores de Coriolanus. Ao ouvir a sétima sinfonia, o que Einstein diz sobre a velocidade da luz me parece mais claro do que sua descrição.
Bach teve vinte filhos, o que é um absurdo (mães nordestinas, no meu tempo de garoto, tinham vinte filhos, contando que dez morressem), e Mozart era escatológico, mas acredito que caibam bem na definição de Tocqueville sobre nobreza, de que, por mais vil seu comportamento e natureza, o aristocrata não pensa baixo. Bach e Mozart também não pensam baixo. Beethoven é sublime, mas conhece o submundo das ruas. Era um republicano. Nunca perdoou Goethe por ter se ajoelhado diante da futura dauphine e rainha da França, a austríaca Maria Antonieta, quando esta chegou da sua terra, a Áustria, para ser mulher de Luís XVI. Beethoven mais ou menos aquiesceu em ensurdecer de vez, o que faz dele outro neurótico da nossa estirpe. Com mais gênio; muito, muito mais...



LEIAM CÃES...

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