quinta-feira, 2 de setembro de 2010

NHÔ NHÔ FARIA 80 ANOS.





MEU SIMPLES OBRIGADO !!! (SIC)



Temos que ler enquanto é tempo.

O AFETO QUE SE ENCERRA – MEMÓRIAS – PAULO FRANCIS

“A INOCÊNCIA É UMA FORMA DE INSANIDADE”
(Graham Greene, O Americano Tranquilo)

NASCIMENTO EM 2 TAKES

“Paulo Francis nasceu em 1951. Mexeu de leve nas cargas e castigos de Franz Paulo Trannin Heilborn, eu, antes que Paschoal Carlos Magno me batizasse ‘Paulo Francis’, nome típico de ‘bailarino’ de teatro-revista (Glória May e Paulo Francis em Catuca o balaio da nega, de Stanislaw Ponte Preta...)”.

“Nasci em 2 de setembro de 1930, na rua São Clemente, Botafogo, Rio, perto da antiga embaixada americana(...), numa casa de vila, em ambiente de classe média. É o que dizem e o tabelião confirma. O leitor tem aí a pista chave da minha personalidade. Tolero (de uns tempos pra cá...), de cara alegre, os tolos, como recomenda o apóstolo Paulo. Tolero às vezes. Paulo também... Mas leio e ouço as coisas sempre em dúvida do que não posso provar. Essa desconfiança, a essa altura, me parece incorrigível. Infelizmente? Me salvou de boas e me priva do abandono emocional, que é uma das alegrias da vida, me informam, enquanto dura. O fato é que nos (raros) paroxismos uma voz me avisa: ‘Bicho, esse negócio não é comigo’, Não se iludam, pela aparente e ocasional fúria de meus escritos. Escrevo frio como um pepino. Prefiro assim, ou já me habituei?
Sei apenas que nasci, presumo que pelos processos convencionais, não existindo na ocasião o bebê de proveta ou os Garotos do Brasil. E fui, jovem, a cara do meu avô alemão, Paul Heilborn, na mesma idade, o que exclui, provavelmente, a hipótese de adoção. Dando crédito à versão oficial, não é verdade que ao me baterem na bunda eu dissesse ‘Cogito ergo sum’, ou, segundo o vulgo, ‘Um Black Label nas pedras’. Se me manifestei, à parte o que Shakespeare chamava sentimentalmente ‘the most piteous sound’, o som mais digno de pena, o nhenhém do desgraçado do bebê, teria sido na linha de ‘Por que não me consultaram se eu queria vir pressa joça?’ A última frase de As Memórias Póstumas de Brás Cubas é minha opinião da paternidade”.

SOBRE A MÍSTICA DO TEATRO

“Estreamos e já contei que minha voz ganhou corpo e se quebraram grilhões de timidez. Certo ou errado nos papéis, há poucas sensações tão intensas quanto aparecer num palco em face de centenas de pessoas. É uma grande suruba emocional.
Começa naquele momento em que o contra-regra (que conduz os atores ao palco, zela por cenário e efeito cênicos) nos leva às coxias, à lateral da cena, ou fundo, onde entraremos, e esperamos ali segundos. O corpo literalmente ferve de excitação intoxicante. Pomos o pé no palco e sentimos, sem ver, os olhos e os sentimentos da multidão. Cada gesto ou palavra nossa se misturam quimicamente a essa atenção. Aprendemos a manipulá-la e é delicioso sentir o poder que exercemos (ainda que nos estejam amaldiçoando em silêncio, na platéia). Cinema e TV, remotos e mecanizados, não comunicam esses prazeres, porque o ator representa para diretores e técnicos. E a continuidade do espetáculo teatral significa uma forma de vida alternativa, de que, ao contrário da nossa vida, temos absoluto controle. Quem experimentou essas sensações compreende com maior facilidade e tolerância os sacrifícios e o ego gigante das estrelas, assim como os excessos a que às vezes se entregam fora de cena, porque tudo parece tão menor e tedioso depois daquelas horas em que nos tornamos o centro do ‘mundo’, e, curiosamente, na pele de outra pessoa, sem carregarmos os ônus inevitáveis da nossa existência real.”

O NASCIMENTO DO POLEMISTA

“Tudo mudou quase sem eu perceber, quase acidentalmente. Dois dos meus melhores amigos, na ocasião, Francisco Pereira da Silva, um dramaturgo de talento, estilista completo, que não encontrou a companhia séria que lhe permitisse desenvolver a inspiração literária a nível equivalente de execução dramática, e João Augusto, aspirante como eu a diretor, eram críticos de teatro, do Diário Carioca e Tribuna da Imprensa, respectivamente.
Uma noite na Gôndola, em Copacabana, ponto do pessoal de teatro do Rio, vi-os cumprimentando Ziembinski, Walmor Chagas e o resto do talentoso elenco que havia estreado em Volpone, a adaptação de Stefan Zweig da peça de Bem Jonson, no TBC. Talentoso o elenco, o espetáculo tinha sido lamentável. Perguntei-lhes, a sós, se estavam me gozando. Não, responderam, concordavam comigo, mas de que adiantava baixar o malho na melhor companhia do país? Não mudaria nada a auto-suficiência do TBC (de uma arrogância que ‘nada deixava a desejar’, comparada à minha, cujo cabedal se limitava às aventuras já descritas e à direção de uma peça infantil para orfanatos que, de tão ruim, cortei metade e reescrevi o resto, não conquistando a amizade do autor, e espetáculo que, à parte as crianças órfãs, ninguém vira). Se criticassem a sério fariam apenas inimigos pessoais.
Me queimei. Nada de pessoal contra Chico ou João, nenhum dos dois carreirista ou oportunista. O que disseram ontem, hoje e amanhã é constante do nosso subdesenvolvimento, em que aqueles acima disso, como Chico e João, preferem evitar o dragão, porque, morto, renasce na próxima esquina, sem do em última análise, filho de forças contra as quais pouco temos a contrapor. Abram qualquer publicação. Há os intocáveis, os rejeitados e os vetados. Mudam caras e nomes. O dragão se permite alguns passos de valsa, no mesmo lugar... Sugere movimentos aos menos observadores.
E a vocação deles não era crítica. Nem a minha. Juro. Resumo da ópera: discutimos à madrugada e fizemos um pacto. Se eu conseguisse um lugar na imprensa e começasse a testar a política de dizer o que pensava, eles me acompanhariam. Paulo Francis polemista nasceu desse incidente, uma discussão entre amigos, em botequim de quinta categoria em Copacabana.”

A ARQUITETURA DA RECONSTRUÇÃO

“Nada houve de espontâneo no que escrevi no Diário Carioca. Foi um ‘trabalho do negativo’ cuidadosamente planejado. Primeiro, iniciei uma campanha de desmoralização sistemática da Velha Guarda, o que incluía empresas, atores e críticos, a meu ver, coniventes. Depois enfatizei a importância dos textos. Às vezes, antes de criticar espetáculos, consumia colunas (e dias) discutindo a dramaturgia. Terceiro, promovi os novos, autores, diretores e atores brasileiros que me pareciam a chance de sairmos do retrógrado e criar algo novo e expressivo da nossa cultura. Não ataquei os estrangeiros, de Celii a Ziembinski, os quais me pareciam contribuir à reforma e, à parte isso, nunca fui chauvinista. Combati apenas as pretensões excessivas do Teatro Brasileiro de Comédia, excessivas em relação a resultados, e o chauvinismo estrangeiro do empresário, Franco Zampari.
Tudo deu certo, na mediada (limitada) que um crítico influi. E ao assumir simultaneamente a crítica de Última Hora dispus de duas tribunas diárias, um duplo e incessante martelo. Em pouco tempo, os ‘velhos’ estavam em retirada, o que incluía autores do tipo Pongetti e Guilherme Figueiredo, de que nunca mais se ouviu falar desde então. Citei acima a geração de autores brasileiros que apareceu e que, hoje, é aceita ao mesmo nível de qualquer dramaturgo estrangeiro. Não falo de qualidade, o que não é possível impor, se tem ou não. O empresário da época, porém, concluía, a priori, que tudo escrito originalmente em português não prestava, ‘não atraía público’, a desculpa esfarrapada que ofereciam. Isso mudou.
Tão importante, a nova crítica abriu caminho para uma geração de diretores, Flávio Rangel, Antunes Filho, Boal, etc. Os atores, afinal. Sempre tinham sido brasileiros, na maioria esmagadora. O diretor brasileiro é que podia ‘nacionalizar’ o teatro, ou seja, retirá-lo da tutela estrangeira exclusiva. Apesar disso, um dos maiores sucessos da época foi do brasileiro Jorge Andrade, em São Paulo, com A Moratória, dirigida pelo italiano Gianni Ratto. Isso não me preocupava, repito minha completa rejeição do chauvinismo (e Ratto, como Ziembinski, não considerava o Brasil uma escala antes do retorno à Europa. Estudaram o país, se assimilaram).
Me acusavam de ‘brutal’, ou na palavra mais precisa de Paulo Autran, ‘ferino’. É verdade, mas não se catuca o balaio da nega com afagos. O negócio é demolir. Ninguém, talvez, me acredite, mas insisto em que (à parte uma exceção lamentável) nada havia de pessoal na minha blitzkrieg. Usei, sem dúvida, um tom único de violência na crítica às artes daquele tempo. Mas isso se devia não apenas à certeza de que eu estava certo, certeza determinante, como a questões de família e formação. Os Heilborn diziam um na cara do outro o que pensavam. Não fomos chegados às mumunhas e eufemismos brasileiros, ao que, em jornalismo, chamo a escola do ‘por outro lado’. Somos mão única, únicas em verdade, não temendo colisões. Jesuítas consideravam ilusões uma forma de corrupção da alma (consideravam corrupção qualquer atitude fora da ‘linha justa’ que propunham...). Na turma de Fernando, ou entre os amigos de Marcello e meus no circuito da Zona Sul, inexistiam candidatos ao Itamarati (exceto na cabeça de Adolpho). E, finalmente, decisivo, eu freqüentava intelectuais marxistas. Estes, desde os tempos de Lênin, se caracterizam por uma rudeza que parece espantosa aos não-iniciados. Basta ler as atas do Partido da URSS, antes que Stálin começasse a falsificá-las em decisões unânimes, redigidas em burocratês. O marxista que não dissesse precisamente o que pensava não seria levado a sério. Lênin, o suposto ditador, várias vezes tentou pedir demissão, tal a fúria com que os colegas o atacaram em debates difíceis, em momentos de crime. Paulo Francis se condicionou assim.”

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