domingo, 2 de janeiro de 2011

OS MÁGICOS CÓRNIOS FERIDOS.



Como diria Zezé Moleira em seu caminhãozinho de feira:
- Disco "DUCARAIO" véio!!!

Escutei este disco (arquivo?!) entre o natal e ano novo; verdade seja dita, motivado pelo post do Alex Antunes.
Colei na sequência...

Sempre bem acompanhado, Otto escala um timaço e faz das suas feridas: POESIA.

Também uma entrevista com o Otto aqui ô cara.
Trechinho: “Você mencionou que Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranqüilos foi bem recebido pela mídia. Eu desconfio disso pra caralho. Sabe por que? Porque ninguém estava falando nada, fiquei anos sem ninguém me chamar pra festival nenhum, agora, do nada ,os caras começam a falar bem de novo. Isso aconteceu porque o Larry Rother fez aquele perfil belíssimo sobre mim no New York Times, que ao invés de falar um monte de besteiras descontextualizadas sobre o meu trabalho, traz um retrato completo sobre a minha carreira. Você faz idéia de quanta gente está na fila pra ganhar um perfil desses em um puta veículo que nem o NYT? Muita gente, muita mesma. E o povo daqui começou a falar bem do meu álbum porque não em como fugir, o bam bam bam da gringa disse, tem que calar a boca. O importante nisso tudo, a única constante, foi o público, que jamais me abandonou”.



Crua
Otto


Há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua. Tua pele é crua.

Há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua. Tua pele é crua.

Dificilmente se arranca lembrança, lembrança, lembrança, lembrança...

Por isso da primeira vez dói, por isso não se esqueça: dói.

E ter que acreditar num caso sério e na melancolia que dizia.

Mas naquela noite que eu chamei você fodia, fodia.

Mas naquela noite que eu chamei você fodia de noite e de dia.

Há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua. Tua pele é crua. É crua.

Há sempre um lado que pesa e um outro lado que flutua. Tua pele é crua. É crua.

Dificilmente se arranca lembrança, lembrança, lembrança, lembrança...

Por isso da primeira vez dói, por isso não se esqueça: dói.

E ter que acreditar num caso sério e na melancolia que dizia.

Mas naquela noite que eu chamei você fodia de noite e de dia.

Mas naquela noite que eu chamei você fodia, fodia.

O poder do corno
por Alex Antunes


Momentos muito agradáveis em Macapá, semana passada. Na varanda do Adriano, baixista e dono de um simpático estúdio caseiro de ensaio, com o pessoal da MiniBox Lunar, ouvindo o Miranda discotecar muitas dezenas de sons bacanas noite adentro. Na preparação estético-psíquica da produção do álbum do grupo, o Miranda funde sons de diferentes épocas e estilos num amálgama inspirador, levando a banda de olhos fechados a um passeio imaginário pelas possibilidades infinitas dos sons – particularmente aqueles que conseguem misturar a delicadeza das vozes femininas com uma certa dose de experimentalismo.

Vento e alguma chuva batendo na varanda nas proximidades do rio Amazonas, Mirandão põe pouco gelo no scotch, acende o charuto, pluga o IPod num system, inicia a viagem sonora pelo mundo. E, de repente, o baixista Saddy grita: “É isso. Olha o Otto aí”.

Nessa hora o Miranda estava tocando Erasmo Carlos. O produtor nega a unanimidade em torno de Carlos, Erasmo, de 71 (“É um disco completamente Vila Madalena”); prefere Sonhos e Memórias (72) e Projeto Salvaterra (74), mas concorda que essa trinca de álbuns é imbatível. Eu próprio vacilei, quando ele colocou, sem dizer quem era, a primeira música música do cantor. “Não Te Quero Santa”. Sabia que já tinha ouvido, sabia que era dos anos 70, mas não lembrava de quem era aquela voz casual e pequena, porém de muita emoção.

E foi nas próximas faixas do parceiro do Roberto que o Saddy, o pesquisador mais empenhado da MiniBox (partiram dele as principais sugestões das músicas a tocar nos encontros com Jorge Mautner e o Macalé, que surpreenderam e agradaram os dois artistas), sacou essa conexão com o Otto – o pernambucano, não o tecladista homônimo da MiniBox. Pois eu estava pensando coisa parecida durante o consagrador show do Otto no Conexão Vivo de Salvador.

Eu sou padrinho musical do Otto. Fui eu que dei um jeito de levar o Apollo 9 para Recife e apresentá-los, quando ele tinha saído do Mundo Livre, o que acabaria dando no hypado álbum Samba Pra Burro. Durante uns quinze anos depois desse encontro estratégico, vi o Otto estrear caoticamente seu projeto solo no Abril Pro Rock, gravar com os recém-conhecidos amigos paulistas no estúdio dos fundos da YB, ser contratado e vestido pela Trama, hypar absurdamente com o disco de estréia, fazer uns álbuns subestimados, casar com a global Alessandra Negrini, ter sempre uma ótima banda, ser um dos brothers brasileiros da ótima Nublu Orchestra (o que viria a salvá-lo do ostracismo, pois o disco mais recente saiu antes pelo selo da Nublu nos Estados Unidos, e certamente não teria saído aqui sem isso), separar-se da Negrini e ir ao fundo do poço.

No Conexão Vivo do ano passado em Campinas, o Otto nos bastidores era um cara cachaçado, virado 36 horas sem dormir nem trocar de roupa, contando uma história meio suspeita sobre ter passado a noite com um casal de intenções estranhas, com um tom ainda mais exaltado do que de costume, um toque de sordidez e perigo. Cometo essa inconfidência não de sacanagem, mas porque o processo de morte e renascimento do Otto é de grande beleza.

Morte? Exagero? O Otto é uma força da natureza. A sua queda tem dimensões extremadas, como tudo que ele vive e narra. “Tentaram me matar, matar de verdade”, disse ele nos bastidores do Conexão em Salvador, acompanhado de sua linda filhinha (uma bonequinha cheia de graça e personalidade). Ele continua o desabafo: “O que era aquele pernambucano se casando com a Alessandra? E pior, em Pernambuco maltratavam a Alessandra também. Chegaram a me convidar e negar passagens a ela para o Carnaval”. Uma pressão injusta, rancorosa, sem propósito, seguida a um hype igualmente despropositado e desproporcional. Uma coisa de desorientar qualquer um de poucos recursos psíquicos.

A separação seria apenas a pá de cal. Fim do Otto. Kaput. Mas quando o novo Otto pisou o lindo palco do Conexão na praia da Pituba, com seu sorriso de dente de prata, era um homem desmontado e reconstruido, aperfeiçoado em sua coragem, redimido em sua sinceridade, polido em sua grandeza, sereno em sua inspiração. Tudo pelo poder de destruição de uma mulher, e pelo poder de reinvenção da música.

Mas o que isso tem a ver com o Erasmo? É que, durante o seu belíssimo show no Conexão de Salvador, Otto demonstrou uma comunicabilidade como o rock brasileiro não demonstrava desde o iê-iê-iê. E porque eu digo iê-iê-iê e não, viajando ao contrário na linha do tempo, Legião Urbana, Secos & Molhados, Raul Seixas, os Mutantes? Hm, talvez Cazuza tenha chegado perto. Mas esses todos eram seres à parte, à margem, especiais na sua “juventude sensível e ética” proto-metrossexual (Russo), androginia chocante (Ney e seus parceiros), messianismo meio sacana (Raul), criatividade esfuziante e anárquica (Mutantes), no seu dedo gay e desabusado apontado à cara da sociedade (Cazuza).

Nenhum “homem comum”, desses heterossexuais, um pouco perdidos diante de uma fêmea mais explosiva, íntegros na medida do possível, meio paralizados entre a autodefesa e a sinceridade, sentimentais sofredores quando a casa cai, se apresentava há décadas, até Otto lançar seu Certa Manhã Acordei de Sonhos Estranhos.

Não sei se o próprio Otto se dá conta claramente disso, pois no show pinçou músicas de todos os discos, sem ênfase notável no último. Mas o que a platéia queria ouvir mesmo era “Crua”, “Seis Minutos”, “Saudade”, “Filha”, as “Lágrimas Negras” de Mautner. Em duas palavras: música de corno. No fundo, o que faz o sucesso do sertanejo, do pagode, do blues, do soul, do próprio rock “clássico”… de quase toda a música da história da humanidade.

No primeiro parágrafo pulei de propósito os baianos tropicalistas. Porque eles cercavam o homem comum, apesar de não sê-lo. Perseguiam, na sua prospecção quase antropológica da música popular, esse arquétipo do homem sofrido, em Vicente Celestino, em Fernando Lobo, em Noel Rosa, em Roberto Carlos, em Chico Buarque, em Luiz Gonzaga. O que Caetano almodovarianamente veio abraçar em “Sozinho” (Peninha), quando finalmente (depois de três décadas!) suas vendagens vieram se encontrar com sua reputação.

Já Chico Buarque, mesmo vindo da classe errada, sempre foi capaz de tocar nesse nervo – exatamente porque Chico nunca foi roqueiro. E no Brasil roqueiro é essa coisa meio provocadora, alienígena, com uma responsabilidade adicional de conectar o país com o mundo, o pop com o popular. È muito curioso que exatamente Caetano tenha cometido o outro grande disco pop de corno da década: Cê.

Mas Caetano aqui é o anti-Otto. Para sofrer com classe, ele se cerca de músicos muito mais jovens e de outra extração, indies desdramatizados mesmo – a ousadia formal é a trincheira da sinceridade excessiva, perigosa. Sem falar nas formas verbais anacrônicas, prosódias exóticas, expressões lusitanas incompreensíveis e construções intrigantes (“Tatuou um Ganesh na coxa/ chegou com a boca roxa de botox/ exigindo rocks/ Tu é gênia, gata, etc./ mas cê foi mesmo rata demais/ Você foi concreta e simplesmente rata comigo demais”). Um corno cifrado, cuja energia rancorosa goteja pelas frestas lisas do som e dos versos precisos, bem desenhados, estilizados. Cê é um disco importantíssimo e belo, mas resolveu os problemas de Caetano sem resolver os da música popular.

Otto não, Otto sofre com cordas e sopros derramados, as presenças emotivas de Céu, Julieta Venegas e Lirinha, saxofones e pianos quase cafajestes, samples fantasmagóricos, viradas de bateria passionais, berrando de desespero. “Nasceram flores no canto de um quarto escuro/ Mas eu te juro, meu amor, são flores de um longo inverno/ Isso é pra morrer/ seis minutos/ (…) Momentos únicos, bem junto na cama de um quarto de hotel”. Otto, que antigamente dizia “música eletrônica pra mim é como cueca – uso se for confortável”, agora encontra a música que é orgânica com seu desconforto arquetípico.

E, claro, contando com os timbres da guitarra de Fernando Catatau, a interface mais poderosa e abrangente entre o brega e o experimental (e a produção sempre sagaz de Pupilo). Assim como Caetano precisou dos Mutantes (e agora de sua nova banda) para soar roqueiro, Otto precisa de Catatau para soar brega – sem deixar de ser roqueiro. E isso antigamente tinha um nome: iê-iê-iê. Roberto sim. Mas Roberto é um crooner, um galã, um ator. Erasmo é esse cara, esse “homem comum” presente no DNA do Otto, como o Saddy bem sacou.

As platéias de Otto estão cada vez maiores e mais diversificadas, e reagindo sem escrúpulos artsy, chorando e gritando na cara dura. A tal fusão entre pop e popular. Se Otto sofre, o Brasil ainda vai sofrer com ele. No show Otto tirou a camisa, sentou tristonho à beira do palco, chamou Bnegão para um momento mais bad. Bnegão nos bastidores, mais tarde, comentou: “Só o Otto mesmo é capaz de cantar ‘fodia, fodia, fodia de noite e de dia’ pras mulheres, e elas ali, na primeira fila, com aquela cara de emoção”, goza ele, fazendo os olhos esgazeados de uma “mulher emocionada com o Otto”.

Tudo porque Otto canta “fodia” sem defesas, sem agressão formal, sem cafajestagem nem desejo de épater la bourgeoisie. Canta com ingenuidade, como um pagodeiro cantaria, sei lá, “estou fazendo amor com outra pessoa”. “Fodia, fodia”, ou melhor, “Crua”, foi parar na trilha da novela da Globo – mas com o verso cabeludo devidamente regravado como “fugia, fugia”. Até os milagres têm limite, né?

*

Não sei se é coincidência, mas quando o cabeção Arnaldo Antunes procura a produção de Catatau num álbum chamado “Iê Iê Iê”, e Wagner Moura, com a banda Sua Mãe, declara que o Cidadão Instigado é a sua preferência e trabalha na infame conexão dark-brega, parece mesmo que o Poder do Corno está sendo descoberto pela nossa elite cultural. Laroiê, Exu Nelson Rodrigues.

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