domingo, 15 de agosto de 2010

EMPRESTA AÍ ?!


Foto de Tomás Rangel

Robert Crumb, ao som de blues e Pixinguinha
Por Bruno Dorigatti

“Com licença, poderia lhe dar estes vinis?” Robert Crumb estava em sua pousada, em Paraty, após a coletiva de imprensa e a assessora da Conrad, editora que publica seus álbuns no Brasil, havia me dito que talvez conseguisse entregar a ele os LPs e dois 78 rotações que havia trazido do Rio de Janeiro. Como Crumb, também aprecio o som dos anos 1920 e 1930, o blues e jazz dos norte-americanos e o nosso choro e samba. Pensei que o quadrinista, autor de Blues (Conrad, 2004) – livro sobre obscuros blueseiros como Charley Patton, capas de vinis e revistas retratando os velhos músicos daquele tempo e histórias onde transparece sua irritação com o barulhento rock’n’roll – pudesse se interessar pelo som de gente como Pixinguinha, Altamiro Carrilho, Canhoto, Noel Rosa, Jacob do Bandolim e Época de Ouro, Aracy de Almeida, Paulo Moura. Encontrei os LPs com certa facilidade no centro do Rio, alguns álbuns clássicos desta turma acima, como São Pixinguinha, com a histórica foto de Walter Firmo do flautista e saxofonista na capa, sentado em sua cadeira de balanço no quintal de casa. Mas os 78 rotações, aqueles antigos discos um pouco menores que os LPs, e muito mais frágeis porque feitos de porcelana, são difíceis de achar no Rio. “Em São Paulo, você encontra com mais facilidade, mas aqui…”, me disse um dono de uma loja de vinis em frente ao Mercado das Flores, no centro. Mas dei sorte e acabei achando dois discos que poderiam interessar Mister Crumb, um do flautista Altamiro Carrilho e outro com um choro e um baião de Canhoto.

Crumb me disse que, entre estes, conhecia Pixinguinha, e ainda Lupércio Miranda e ficou curioso para ouvir os 78. E topou bater um papo, onde falou sobre as músicas que ouvia em casa, quando criança, no rádio da mãe, como conheceu essas velhas músicas nos antigos filmes do início século e como era difícil achar esse som nos anos 1950, logo após a explosão do rock, quando pela primeira vez a juventude americana foi vista como um mercado consumidor em potencial. A música de duas, três décadas antes havia desaparecido, não existia em LPs, e tampouco existiam livros que contassem aquela história. Crumb então esbarrou com alguns 78 e viu que ali, escondidas, estavam os obscuros músicos e cantoras que ele tanto admirava. Foi o começo desta fixação que dura até hoje, e ele já reuniu milhares de 78 e LPs, guardados em um quarto em sua casa em Souve, um vilarejo no Sul da França, com 1.500 habitantes, onde vive com a mulher, também quadrinista, Aline Crumb.

O quadrinista de 67 anos também falou dos tempos em que começou a publicar suas histórias, em São Francisco no final dos 1960, no momento em que a contracultura norte-americana explodia. Crumb folheava o recém-lançado Meus problemas com as mulheres (Conrad, 2010) - ele ainda não havia visto a edição brasileira) - e o papo começou com os comentários sobre aquelas histórias e retratos dos 1960, 1970 e 1980.

Robert Crumb. Que homem doente…

Você se vê como um doente?

Crumb. É, claro, mas todos eram meio loucos.

E como é fazer esses desenhos?

Crumb. É um prazer, um grande prazer desenhar essas coisas. É uma espécie de masturbação. Sempre tive muito prazer em colocar essas fantasias no papel. Era algo que tinha necessidade de fazer. Hoje nem tanto mais, estou muito velho agora.

E poderia falar de suas primeiras memórias musicais? Ouvia muita música quando criança?

Crumb. Claro, mas a maior parte da música que eu ouvia, era ruim. Aquela música popular que minha mãe ouvia no rádio, dos anos 1940 e começo dos 1950. A pior música popular, de cantores que vocês talvez não conheçam aqui, como Frank Sinatra.

Ele é bem conhecido aqui…

Crumb. Doris Day, Patty Como, coisas horríveis. Ela me falou mais tarde que gostava de ouvir polca no rádio. E quando surgiu a televisão, no começo dos 1950, eu assistia aqueles velhos filmes de 1931, 1932 e eu realmente gostava da música que tinha lá, por alguma razão que nem sei. Comecei a procurar aquela música no rádio, em discos, e não conseguia achá-la. Até que encontrei aqueles discos de 78 rotações bem velhos, quando tinha 16, 17 anos. Descobri que as músicas daqueles filmes estavam nestes discos. Aí me tornei completamente viciado em procurar essas gravações. Eu apenas tinha que ouvir aquela música, não sei por quê. Uma espécie de intoxicação com aquela velha música. Eu ainda sou intoxicado por ela.

Por outro lado, você é associado com a música dos anos 1960, o rock e a contracultura, mas você odeia aquilo.

Crumb. Meus quadrinhos fizeram parte daquela cultura hippie, Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Doors, Jim Morrison. Então relacionavam minhas histórias hippies com aquela música, mas aquilo não me interessava. Não convivia com eles. Conheci Janis Joplin, ela me pediu para fazer aquela capa de Cheap Thrills. Mas não tinha conexão com eles. Estava fora daquilo, desenhando o tempo todo, era o que fazia, desenhava.

E por que esse período da música lhe fascina?

Crumb. Não sei, mas essa música americana como o jazz, a partir dos 1930, não me interessou mais, tirando algo de country e do blues. E me interesso pela música de outros países, alguma coisa dos 1950. E eu gosto de algo dessa época, aqueles velhos rockabillies. É estranho, pois não tenho aquele sincronia com o meu tempo, é muito estranho, desconfortável, mas quando eu escutava aquela música em casa, sozinho, era e é profundamente prazeroso. É mais autêntico para mim, mais real, uma coisa engraçada, sou preso àquilo, que é de antes de eu ter nascido. Minha mãe gostava de Benny Godman, Glenn Miller, Art Shaw, mas a música que eu gostava era do tempo dos meus avós. E termina no começo dos 1930.

E você também desenhou histórias sobre aqueles músicos obscuros como Charley Patton (ao lado) e aquela época.

Crumb. Fui fazer isso mais tarde, até porque quando era jovem e descobri aquilo não havia informação a respeito. Tinha poucos livros sobre jazz, mas coisas sobre Patton você não encontrava. As pessoas estavam começando a pesquisar aquilo, tinha alguns amigos da minha idade que também curtiam aquilo no começo dos 1960, iam pro Sul, Mississippi, Louisiana, Alabama e Kentucky, procurando os discos e pesquisando sobre as pessoas que faziam aquelas músicas.

Tem uma história em Blues, que alguém vai batendo de porta em porta, perguntando se aquelas pessoas têm em casa os 78 e gostariam de se desfazer daquilo. Você chegou a fazer isso?

Crumb. Sim, eu fiz aquilo e achei bons discos assim. Li um livro sobre jazz, de 1939, que tinha um capítulo, “Procurando discos”, e falava sobre bater nas portas da vizinhança negra. Eu vou tentar isso, eu pensei. Tinha 18, 19 anos a primeira vez que saí batendo nestas portas, em Delaware, onde morava. E aquelas pessoas ainda tinham os velhos gramofones em casa e os discos da década de 1920. E perguntava se queriam me vender aquilo, e na maioria das vezes eu conseguia. E como não tinha muito dinheiro, pagava 10 centavos por cada um deles. E achei discos incríveis assim. E os nomes eram na maioria desconhecidos ou esquecidos e me perguntava quem era Big Bill, Salty Dog Sam, Joe Evans e Buddy Boy Hawkins, The Famous Hokum Boys. Aquela música era incrível.

Ainda esta semana, você lê aqui a íntegra do longo papo com Mister Robert Crumb, onde ele fala mais sobre Janis Joplin, porque resolveu ilustrar o livro do Gênesis e o novo álbum que prepara com a mulher, Aline, também quadrinista

Nenhum comentário:

Postar um comentário