terça-feira, 17 de agosto de 2010

LIVROS FANTASMAS 2





Apareceu do nada, leitura bem rápida, vários fatos interessantes, passagens com os reis da música e futebol, atrizes gringas, grandes atores no armário, e outros.
Caso David Cardoso fosse americano, poderia ter tido sua carreira ressuscitada por um Tarantino da vida.



Capítulo II - A Força de Mogambo

"Desde criança que gostava de cinema, mas um filme me marcou na infância. Eu tinha uns nove anos, estava em São Paulo, quando um tio meu, que depois foi diretor da revista Visão, me levou ao Cine Metro para assistir Mogambo, com Clark Gable, Grace Kelly em começo de carreira, e Ava Gardner que para mim é a mulher mais bonita que já apareceu no cinema. Direção de John Ford. Mas naquela época, claro, não me prendia ao nome de diretor. Gable com aquele charme aos 54 anos de idade. Assisti à primeira sessão e fiquei impressionado com o filme. Aquela forma de fazer Cinema me tocou muito.Voltei para casa onde o meu já estava lá, dizendo que tinha que voltar para o Mato Grosso no dia seguinte. Mas pedi mais um dia para voltar ao Metro e ver Mogambo de novo. Entrei ao meio dia e sai as oito da noite... Isso porque menor não podia ficar depois dessa hora. Cheguei a chorar diante do filme. Uma emoção incrível.

Passados uns três anos, estava de férias em Maracaju que não tinha cinema. O meu pai me mandou à estação de trens pegar uma encomenda. E lá fui eu, aproveitando para comprar a Cinelândia que era quinzenal. Na estação, encontrei o Jair, um amigo meu, bem chucro, típico de fazenda, mas que gostava de Cinema e que sabia também desse meu gosto. Ele me convidou para assistir um filme. Estranhei, afinal Maracaju não tinha cinema, mas o Jair disse que ia ter exibição em um clube, por sinal um clube bem tosco. Concordei em ir e perguntei qual era o filme. “Mogambo”, respondeu. Fiquei pasmo. A cópia estava chegando naquele trem, vinha de Ponta-Porã e deveria chegar às 11h29. Por quê 11h29 e não 11h30? Eu nunca entendi esses horários da Noroeste, era tudo assim, 17h23, 9h18... Fiquei em um estado de excitação total, não pensava em mais nada. E o trem das 11h29 chegou com quase uma hora de atraso. Peguei a encomenda para meu pai, deixei com ele e corri para a casa do Jair, para abrir as latas com a cópia e o cartaz... Certifiquei-me que era Mogambo e fiquei emocionado de almoçar ao lado do filme. Fiz questão de ir ao clube e fiz questão de colocar aquele cartaz. Peguei uma tinta branca e dei um realce em volta. No salão, coloquei as cadeiras em forma de cinema.

A sessão estava marcada para as 8 da noite. Tinha ser naquela hora porque a partir das 10 da noite, não havia mais energia em Maracaju, o único gerador era desligado e a luz acabava. Lá pela sete da noite dá uma reviravolta no tempo. Começou a chover, uma chuva que foi ficando torrencial. E eu em casa que ficava a uns 500 metros do clube. Meu pai não queria me deixar sair, mas coloquei toalha na cabeça, galochas e lá fui. Não tinha ninguém no clube. O Jair chegou e disse que não ia mais passar o filme... Sai na chuva lá pelas sete e meia e convoquei umas pessoas, implorei, e acabei juntando uns cinco gatos pingados. Mesmo assim, o Jair foi irredutível, por contrato ele precisava ter um mínimo de 50 pessoas para assistir. “Eles ficam com 25 ingressos e eu fico com os outros 25. É a lei”, explicou. “E se alguém comprar esse resto de ingressos?”, perguntei. O Jair riu, perguntou quem seria louco. Sai, fui até minha casa, a minha mãe já dormia e de forma sorrateira abri uma gaveta do meu pai e surrupiei o dinheiro necessário. Quando volto para o clube, entrego o dinheiro e... Um black-out geral. Que desespero. Naquela escuridão, eu pedindo para o Jair passar o filme assim que a luz voltasse. E voltou. Mas fraca. O projetor não alcançava a velocidade necessária. Daí a pouco a voltagem se normalizou e surgiu na tela esplendoroso o Leão da Metro. Eu chorava... Conto isso agora porque meus pais nunca souberam desse meu ato ilícito. Deram por falta do dinheiro, mas pensaram que um parente pegou, jamais desconfiaram do filho. Me arrependo de nunca ter contado... E eles já se foram, sem saber a verdade. Mas era tamanha a minha paixão por cinema. E por Mogambo."

Dica de filme: Corpo Devasso

Este é o "Midnight Cowboy" tupiniqum



Este filme é exemplar em relação à produção da Boca do Lixo, por vários motivos. Primeiro, por representar uma época que originou várias obras hoje antológicas, como "A Mulher que Inventou o Amor", de Jean Garrett, e "Império do Desejo", de Carlos Reichenbach, sem falar nos blockbusters "Giselle" e "Mulher Objeto".

Em segundo lugar, Alfredo Sternhein chamou para trabalhar consigo uma equipe que era uma seleção do que a Boca tinha de melhor. Ody Fraga o ajudou no roteiro, Claudio Portioli fez fotografia e câmera, e a produção é da DaCar, de David Cardoso, que faz o protagonista. O elenco traz mais umas dez figurinhas carimbadas da Rua do Triunfo.

Por fim, "Corpo Devasso" é um dos exemplos mais bem-acabados da tentativa de se unir apelo popular (sob a forma de erotismo) a uma certa militância política e de costumes no cinema brasileiro.

No início, você acha que está vendo um filme típico de David Cardoso: Beto é um atleta sexual simplório, explorado por uma enorme sequencia de mulheres: a filha do patrão (Evelise Olivier), uma fotógrafa tarada (Neide Ribeiro), uma advogada fazendeira (Meiry Vieira), a filha dela (Nádia Destro) etc... Mesmo a jornalista militante (Patrícia Scalvi) que se apaixona por ele acaba por largá-lo na primeira dificuldade.

Em meio a estes desencontros, Beto cai na prostituição. É quando conhece Raul (Arlindo Barreto, que fez o Bozo nos anos seguintes), que se apaixona por ele. É então que a obra se distingue e passa a integrar o panteão dos melhores momentos da Boca do Lixo.

O diretor não teve medo de mostrar o "rei da pornochanchada" em cenas de sexo com outro marmanjo. Mas vários outros filmes fizeram algo semelhante. O que é inovador aqui é que os gays de Sternhein, se não fogem inteiramente dos estereótipos, são, por outro lado, complexos, podem ter facetas diversas. A homossexualidade não os torna, necessariamente, melhores ou piores. Vistos sem preconceitos e sem paternalismo, tornam-se simplesmente humanos. Imagino que seja um caso único, na época.

Beto, por sua vez, não é apenas um rapaz do interior explorado pela luxúria e pelo "desamor" da cidade grande. Ele se mescla a essa megalópole, torna-se confuso e contraditório como ela própria, é capaz de encantar-se e de enojar-se com sua própria sexualidade. Esta, se proporciona dinheiro a seu bolso e prazer a seu corpo devasso, também domina tiranicamente seus passos, do dia em que foge da roça àquele em que sai da prisão. Para mim, a melhor atuação da carreira de David, justamente em seu papel mais desafiador.

A obra traz ainda uma ansiedade gostosa, típica dos tempos da abertura, quando se começava a poder falar de política sem (muito) medo de represálias. Fala-se de socialismo, democracia, greve, corrupção, tudo de uma forma atropelada, caótica e inconclusiva. Quem gosta de achar defeito dirá que é filosofia de botequim; eu prefiro ter consciência histórica e notar que isso é próprio de quem ficou amordaçado muito tempo.

É quase certo que este discurso poderia se refinar e se organizar com o tempo, principalmente nas mãos de diretores como Sternheim (cujas obras muitas vezes trazem este conteúdo político). Porém, por motivos de força maior, a Boca tomaria o rumo do sexo explícito poucos anos depois, o que acabaria por levá-la a uma irreversível decadência e ao colapso final, por volta de 1987.

Entre as cinzas, "Corpo Devasso" resgata um dos momentos mais críticos, criativos e ousados daquela produção. Uma bela amostra do que o cinema brasileiro de extração popular tinha de vigor, potencial e ousadia.

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