sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FAZENDO MINHAS AS PALAVRAS 6





Deus não está morto ainda
por William Lane Craig


Pode-se pensar, devido à atual enchente de best-sellers ateístas, que a crença em Deus se tornou intelectualmente indefensável para as pessoas pensantes, atualmente. Mas uma olhada nos livros de Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens, dentre outros, revela rapidamente que o chamado Novo Ateísmo carece de músculos intelectuais. Ele é complacentemente ignorante acerca da revolução que tem acontecido na filosofia anglo- americana. Ele reflete o cientificismo de uma geração passada, ao invés do cenário intelectual contemporâneo.O alto ponto cultural daquela geração chegou em 8 de abril de 1966, quando a revista Time publicou uma reportagem principal cuja capa era completamente preta, exceto pelas três palavras coloridas em letras vermelhas brilhantes: “Deus está morto?”. A reportagem descrevia o movimento da “morte de Deus”, então corrente na teologia americana. Mas, parafraseando Mark Twain, as notícias sobre o falecimento de Deus foram prematuras. Pois, ao mesmo tempo em que teólogos escreviam o obituário de Deus, uma nova geração de jovens filósofos estavam descobrindo sua vitalidade.
Nas décadas de 1940 e 1950, muitos filósofos acreditavam que falar sobre Deus, visto que não se pode verificá-lo pelos cinco sentidos, é sem sentido — um verdadeiro disparate. Este verificacionismo finalmente desmoronou, em parte porque os filósofos perceberam que o verificacionismo em si não podia ser verificado! O colapso do verificacionismo foi o evento filosófico mais importante do século XX. Sua queda significava que os filósofos estavam livres mais uma vez para cuidar de problemas tradicionais da filosofia que o verificacionismo havia suprimido. Junto com o ressurgimento do interesse nas questões filosóficas tradicionais, apareceu algo completamente inesperado: o renascimento da filosofia cristã.
O ponto de virada provavelmente surgiu em 1967, com a publicação de God and Other Minds: A Study of the Rational Justification of Belief in God [Deus e Outras Mentes: Um Estudo sobre a Justificação Racional da Crença em Deus], escrito por Alvin Plantinga. Nos passos de Plantinga, seguiu-se multidão de filósofos cristãos, escrevendo em periódicos acadêmicos, participando de conferências profissionais e publicando nas melhores editoras acadêmicas. A cara da filosofia anglo-americana tem sido transformada, como resultado. O ateísmo, embora talvez ainda seja o ponto de vista dominante na academia americana, é uma filosofia em retirada.
Em artigo recente, o filósofo Quentin Smith, da Universidade de Western Michigan, lamenta o que ele chama de “dessecularização da academia que evoluiu na filosofia desde os fins da década de 1960″. Ele reclama sobre a passividade dos naturalistas em face da onda dos “teístas inteligentes e talentosos que estão entrando na academia atualmente”. Smith conclui: “Deus não está ‘morto’ na academia; ele retornou à vida no final da década de 1960 e agora está vivo e passa bem em sua última fortaleza acadêmica, os departamentos de filosofia”.
O renascimento da filosofia cristã tem sido acompanhado por um ressurgimento do interesse na teologia natural, o ramo da teologia que procura provar a existência de Deus sem recorrer à revelação divina. O objetivo da teologia natural é justificar uma cosmovisão teísta ampla, uma que seja comum a cristãos, judeus, muçulmanos e deístas. Enquanto poucos os chamariam de provas irresistíveis, todos os tradicionais argumentos para a existência de Deus, sem mencionar alguns novos argumentos criativos, encontram articulados defensores atualmente.

Os argumentos
Em primeiro lugar, vamos fazer um rápido passeio por alguns dos argumentos atuais da teologia natural. Vamos conhecê-los em suas formas condensadas. Isto tem a vantagem de tornar a lógica dos argumentos bem clara. As estruturas dos argumentos poderão, então, ser desenvolvidas mediante discussão mais completa. Uma segunda questão crucial — sobre qual a utilidade de um argumento racional em nossa era supostamente pós-moderna — será analisada na próxima seção.

O argumento cosmológico. Versões deste argumento são defendidas por Alexander Pruss, Timothy O’Connor, Stephen Davis, Robert Koons e Richard Swinburne, entre outros. Uma formulação simples do argumento é:
1. Tudo o que existe tem uma explicação para sua existência (seja na necessidade de sua própria natureza ou em uma causa externa).
2. Se o universo tem uma explicação para a sua existência, esta explicação é Deus.
3. O universo existe.
4. Logo, a explicação para a existência do universo é Deus.
Este argumento é logicamente válido. Então, a única questão é a veracidade das premissas. A premissa (3) é inegável para qualquer um que busque sinceramente a verdade; logo, a questão está nas premissas (1) e (2).
A premissa (1) parece bastante plausível. Imagine que você esteja andando pela floresta e encontre uma bola translúcida parada no chão. Você iria achar bastante bizarra a afirmação de que a bola apenas existe sem nenhuma explicação. E aumentar o tamanho da bola, até que ela se torne do tamanho do cosmos, não iria servir para eliminar a necessidade de uma explicação para sua existência.
A premissa (2) pode parecer controversa, em princípio, mas ela é de fato idêntica à declaração ateísta usual de que, se Deus não existe, então o universo não tem uma explicação para sua própria existência. Além disso, (2) é bastante plausível por seu próprio mérito. Pois uma causa externa para o universo precisa estar além do espaço e do tempo e, portanto, não pode ser física ou material. Ora, há apenas duas classes de objetos que se adéquam a esta descrição: objetos abstratos, como números, ou uma mente inteligente. Mas objetos abstratos são causalmente impotentes. O número 7, por exemplo, não pode causar nada. Portanto, conclui-se que a explicação para o universo é uma mente externa, transcendente e pessoal que criou o universo — o que a maioria das pessoas tradicionalmente tem chamado de “Deus”.

O argumento cosmológico kalam. Esta versão do argumento tem uma rica herança islâmica. Stuart Hackett, David Oderberg, Mark Nowack e eu temos defendido o argumento kalam. Sua formulação é simples:
1. Tudo que começa a existir tem uma causa.
2. O universo começou a existir.
3. Logo, o universo tem uma causa.
A premissa (1) certamente parece mais plausível que sua negação. A idéia de que as coisas possam surgir sem uma causa é pior do que mágica. No entanto, é extraordinário como tantos não-teístas, devido à força da evidência para a premissa (2), têm negado (1), ao invés de concordar com a conclusão do argumento.
Os ateus têm tradicionalmente negado (2) em favor de um universo eterno. Mas existem boas razões, filosóficas e científicas, para duvidar de que o universo não teve um início. Filosoficamente, a idéia de um passado infinito parece absurda. Se o universo nunca teve um início, então o número de eventos passados na história do universo é infinito. Esta não apenas é uma idéia paradoxal, mas também levanta o problema: como poderia o evento presente ter alguma vez chegado se um número infinito de eventos anteriores deve ter transcorrido antes?
Além disso, uma série extraordinária de descobertas na astronomia e na astrofísica durante o último século tem soprado nova vida no argumento cosmológico kalam. Agora, possuímos evidências razoavelmente fortes de que o universo não é eterno no passado, mas teve início absoluto há 13,7 bilhões de anos em um evento cataclísmico conhecido como o Big Bang [Grande Explosão].
O Big Bang é tão extraordinário porque ele representa a origem do universo a partir de literalmente nada. Pois toda a matéria e energia, e até mesmo os próprios espaço físico e tempo, vieram a existir no Big Bang. Enquanto alguns cosmologistas têm tentado criar teorias alternativas com o objetivo de evitar esse início absoluto, nenhuma dessas teorias teve sucesso na comunidade científica. De fato, em 2003, os cosmologistas Arvind Borde, Alan Guth e Alexander Vilenkin foram capazes de provar que qualquer universo que está, notavelmente, em um estado de expansão cósmica, não pode ser eterno no passado, mas deve ter possuído um início absoluto. De acordo com Vilenkin, “os cosmologistas não podem mais se esconder atrás da possibilidade de um universo eterno no passado. Não há escapatória; eles devem encarar o problema de um início cósmico”. Segue-se, então, que deve haver uma causa transcendente que trouxe o universo à existência, uma causa que, como vimos, é plausivelmente atemporal, não-espacial, imaterial e pessoal.

O argumento teleológico. O antigo argumento do design [projeto] hoje continua forte como nunca, defendido em várias formas por Robin Collins, John Leslie, Paul Davies, William Dembski, Michael Denton e outros. Os defensores do movimento do Projeto Inteligente [Intelligent Design] continuam a tradição de encontrar exemplos de projeto em sistemas biológicos. Mas o destaque na discussão está no recém descoberto extraordinário ajuste preciso [fine-tuning] do cosmos para a vida. Este ajuste preciso é de dois tipos. Primeiramente, quando as leis da natureza são expressas como equações matemáticas, elas contêm certas constantes, como a constante gravitacional. Os valores matemáticos dessas constantes não são determinados pelas leis da natureza. Segundo, existem certas quantidades arbitrárias que são simplesmente partes das condições iniciais do universo — por exemplo, a quantidade de entropia no universo.
Estas constantes e quantidades incidem em um conjunto extraordinariamente limitado de valores que permitem a vida. Se tais constantes e quantidades fossem alteradas por menos que a espessura de um fio de cabelo, o equilíbrio que permite a vida seria destruído, e a vida não existiria.
Destarte, pode-se argumentar:
1. O ajuste preciso do universo é resultado da necessidade física, ou do acaso ou do design.
2. Ele não é resultado da necessidade física e nem do acaso.
3. Logo, ele é resultado do design.
A premissa (1) simplesmente apresenta as opções existentes para explicar o ajuste preciso. A premissa principal, portanto, é (2). A primeira alternativa, necessidade física, afirma que as constantes e as quantidades devem ter o valor que possuem. Esta alternativa é pouco recomendável. As leis da natureza são consistentes com uma ampla gama de valores para as constantes e quantidades. Por exemplo, atualmente, a candidata com melhor potencial para se tornar a teoria unificada da física, a teoria das supercordas ou “Teoria-M”, permite um “cenário cósmico” de cerca de 10500 possíveis diferentes universos governados pelas leis da natureza, e apenas uma proporção infinitesimal deles pode sustentar a vida.
Com relação ao acaso, os teóricos contemporâneos reconhecem cada vez mais que as probabilidades contra a sintonia fina são simplesmente insuperáveis, a menos que se esteja preparado para abraçar a hipótese especulativa de que o nosso universo é apenas um membro de um agrupamento infinito e aleatoriamente ordenado de universos (i.e., o multiverso). Nesse agrupamento de mundos, cada mundo fisicamente possível é concretizado, e obviamente nós podemos observar apenas o mundo onde as constantes e quantidades são consistentes com a nossa existência. É aqui que o debate esquenta, atualmente. Físicos como Roger Penrose, da Universidade de Oxford, lançam poderosos argumentos contra qualquer apelo a um multiverso como opção para se explicar o ajuste preciso.

O argumento moral. Um número de eticistas como Robert Adams, William Alston, Mark Linville, Paul Copan, John Hare, Stephen Evans e outros tem defendido teorias de ética do “comando divino”, que sustentam diversos argumentos morais para a existência de Deus. Por exemplo, um desses argumentos é:
1. Se Deus não existe, valores morais e obrigações objetivos não existem.
2. Valores morais e obrigações objetivos existem.
3. Logo, Deus existe.
Valores morais e obrigações objetivos possuem o significado de valores e obrigações que são válidos e obrigatórios, independentemente da opinião humana. Um bom número de ateus e teístas igualmente concordam com a premissa (1). Dada uma cosmovisão naturalista, seres humanos são apenas animais, e as atividades que denominamos assassinato, tortura e estupro são naturais e moralmente neutras, amorais, no reino animal. Além disso, se não há ninguém para ordenar ou proibir certas ações, como podemos ter obrigações ou proibições morais?
A premissa (2) parece ser mais contestável, mas provavelmente será uma surpresa para a maioria dos leigos saber que (2) é amplamente aceita entre os filósofos. Pois qualquer argumento contra uma moral objetiva tende a ser baseado em premissas que são menos evidentes do que a realidade dos valores morais em si, como apreendidos na nossa experiência moral. A maioria dos filósofos, portanto, reconhece distinções morais objetivas.
Os não-teístas irão tipicamente se opor ao argumento moral com um dilema: algo é bom porque Deus o deseja, ou Deus deseja algo porque esse algo é bom? A primeira alternativa torna o bem e o mal arbitrários, enquanto a segunda torna o bem independente de Deus. Felizmente, o dilema é falso. Os teístas têm tradicionalmente abraçado uma terceira alternativa: Deus deseja algo porque Ele é bom. Isto é, o que Platão chamou de “o Bem” é a natureza moral de Deus em si. Deus é, por natureza, amoroso, bom, imparcial e assim por diante. Ele é o paradigma da bondade. Portanto, o bem não é independente de Deus.
Além disso, os mandamentos de Deus são uma expressão necessária de sua natureza. Suas ordens para nós, portanto, não são arbitrários, mas são reflexões necessárias de seu caráter. Isto nos dá uma fundação adequada para a afirmação de valores morais e obrigações objetivos.

O argumento ontológico. O famoso argumento de Anselmo foi reformulado e defendido por Alvin Plantinga, Robert Maydole, Brian Leftow e outros. Deus, observa Anselmo, é por definição o maior ser concebível. Se você pudesse conceber algo maior do que Deus, então isso seria Deus. Portanto, Deus é o maior ser concebível, um ser maximamente grande. Então, como seria tal ser? Ele seria todo-poderoso, onisciente e todo-bondoso, e iria existir em todos os mundos logicamente possíveis. Então, pode-se argumentar:
1. É possível que um ser maximamente grande (Deus) exista.
2. Se é possível que um ser maximamente grande exista, então um ser maximamente grande existe em algum mundo possível.
3. Se um ser maximamente grande existe em algum mundo possível, então ele existe em todos os mundos possíveis.
4. Se um ser maximamente grande existe em todos os mundos possíveis, então ele existe no mundo real.
5. Logo, um ser maximamente grande existe no mundo real.
6. Logo, um ser maximamente grande existe.
7. Logo, Deus existe.
Pode ser uma surpresa saber que os passos 2-7 deste argumento são relativamente incontroversos. A maioria dos filósofos concordaria que se a existência de Deus é até mesmo possível, então ele deve existir. Então a única questão é: a existência de Deus é possível? O ateu deve sustentar a impossibilidade da existência de Deus. Ele deve dizer que o conceito de Deus é incoerente, como o conceito de um solteiro casado ou um quadrado redondo. Mas o problema é que o conceito de Deus não parece ser incoerente desta maneira. A idéia de um ser que é todo-poderoso, onisciente e todo-bondoso em qualquer mundo possível parece perfeitamente coerente. E na medida em que a existência de Deus é até mesmo possível, conclui-se que Deus deve existir.

Por que se importar?
É claro que existem réplicas e tréplicas a todos estes argumentos, e ninguém imagina que um consenso será alcançado. De fato, após um período de passividade, existem atualmente sinais de que o gigante adormecido do ateísmo foi despertado de seu sono dogmático e está de volta à luta. J. Howard Sobel e Graham Oppy escreveram grossos livros acadêmicos criticando os argumentos da teologia natural e a Editora da Universidade de Cambridge [Cambridge University Press] lançou seu Companion to Atheism (Guia ao Ateísmo), no ano passado. De qualquer forma, a própria presença do debate na academia é um sinal em si mesmo de quão saudável e vibrante é a cosmovisão teísta, atualmente.
Apesar de tudo, alguns podem pensar que o ressurgimento da teologia natural em nossos tempos é apenas muito trabalho perdido. Não vivemos em uma cultura pós-moderna na qual apelos a tais argumentos apologéticos não são mais eficazes? Argumentos racionais a favor da verdade do teísmo supostamente não devem mais funcionar. Alguns cristãos, portanto, advertem que deveríamos apenas compartilhar nossas narrativas e convidar as pessoas a participarem dela.
Este tipo de pensamento é culpado de um desastroso diagnóstico equivocado da cultura contemporânea. A ideia de que vivemos em uma cultura pós-moderna é um mito. De fato, uma cultura pós-moderna é uma impossibilidade; ela, absolutamente, não permitiria a vida. As pessoas não são relativistas quando se trata de assuntos como a ciência, a engenharia e a tecnologia. Ao invés disso, elas são relativistas e pluralistas em matérias de religião e ética. Mas, é claro, isso não é pós-modernismo; isso é modernismo! É apenas o velho verificacionismo, que sustenta que tudo o que você não pode provar com seus cinco sentidos se trata de matéria de gosto pessoal. Nós vivemos em uma cultura que se mantém profundamente modernista.
De outra forma, como poderíamos entender a popularidade do Novo Ateísmo? Dawkins e companhia são inerentemente modernistas e até mesmo cientificistas em suas abordagens. De acordo com a leitura pós-modernista da cultura contemporânea, seus livros deveriam cair como água na pedra. Ao invés disso, as pessoas devoram esses livros avidamente, convencidas de que a crença religiosa é tolice.
Visto sob esta luz, adaptar o evangelho para uma cultura pós-modernista é agir em prol do fracasso. Ao deixar de lado nossas melhores armas da lógica e da evidência, nós garantimos o triunfo do modernismo sobre nós. Se a igreja adotar esse plano de ação, as conseqüências para a próxima geração serão catastróficas. O Cristianismo será reduzido a nada, senão outra voz na cacofonia de vozes em competição, cada uma compartilhando sua própria narrativa e nenhuma recomendando a si mesma como a verdade objetiva acerca da realidade. Enquanto isso, o naturalismo científico continuará a moldar nossa visão cultural de como o mundo realmente funciona.
Uma teologia natural robusta pode muito bem ser necessária para o evangelho ser efetivamente ouvido na sociedade ocidental de hoje. Em geral, a cultura ocidental é profundamente pós-cristã. É produto do Iluminismo, que introduziu na cultura europeia o fermento do secularismo que tem permeado a sociedade ocidental até hoje. Enquanto a maioria dos pensadores iluministas originais era de teístas, a maioria dos intelectuais ocidentais atualmente não considera mais o conhecimento teológico como possível. A pessoa que seguir a busca pela razão com firmeza, até o fim, será ateísta ou, no melhor dos casos, agnóstica.
Entender apropriadamente nossa cultura é importante porque o evangelho nunca é ouvido em isolamento. É sempre ouvido dentro do pano de fundo do ambiente cultural contemporâneo. Uma pessoa que cresce em um ambiente cultural no qual o Cristianismo é visto como uma opção intelectualmente viável irá apresentar abertura ao evangelho. Mas tanto faz pedir para o secularista acreditar em fadas, duendes ou em Jesus Cristo!
Cristãos que depreciam a teologia natural porque “ninguém vem à fé através de argumentos intelectuais” são, portanto, tragicamente míopes. Pois o valor da teologia natural vai muito além dos contatos evangelísticos imediatos de alguma pessoa. É tarefa mais ampla da apologética cristã, inclusive da teologia natural, ajudar a criar e manter um ambiente cultural em que o evangelho possa ser ouvido como uma opção intelectualmente viável para o homem e a mulher pensantes. Desta forma, isto fornece a permissão intelectual para as pessoas crerem quando seus corações forem tocados. À medida que avançamos no século XXI, eu antecipo que a teologia natural será uma preparação crescentemente vital e relevante para que as pessoas recebam o evangelho.

Bibliografia
Obras de estudiosos citados

Adams, Robert. Finite and Infinite Goods. Oxford: Oxford University Press, 2000.
Alston, William. “What Euthyphro Should Have Said”. In Philosophy of Religion: a Reader and Guide, pp. 283-98. Ed. Wm. L. Craig. New Brunswick, N. J.: Rutgers University Press, 2002.
Collins, Robin. The Well-Tempered Universe (no prelo).
Copan, Paul. “God, Naturalism, and the Foundations of Morality”. In The Future of Atheism: Alister McGrath and Daniel Dennett in Dialogue. Ed. R. Stewart. Minneapolis: Fortress Press, 2008.
Craig, William Lane. The Kalam Cosmological Argument. Ed. Reimp.. Eugene, Ore.: Wipf & Stock, 2001.
Davies, Paul. Cosmic Jackpot. Boston: Houghton Mifflin, 2007.
Davis, Stephen T. God, Reason, and Theistic Proofs. Reason and Religion. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1997.
Dembski, William. The Design Revolution. Downers Grove, Ill.: Inter-Varsity, 2004.
Denton, Michael. Nature’s Destiny: How the Laws of Biology Reveal Purpose in the Universe. Nova Iorque: Free Press, 1998.
Evans, C. Stephen. Kierkegaard’s Ethic of Love: Divine Commands and Moral Obligations. Oxford: Oxford University Press, 2004.
Hackett, Stuart. The Resurrection of Theism. Ed. Reimp. Grand Rapids: Baker, 1982.
Hare, John. “Is Moral Goodness without Belief in God Rationally Stable?” In God and Ethics: A Contemporary Debate. Ed. Nathan King and Robert Garcia. Lanham, Md.: Rowman & Littlefield, 2008.
Koons, Robert. “A New Look at the Cosmological Argument”. American Philosophical Quarterly 34 (1997): 193-211.
Leftow, Brian. “The Ontological Argument”. In The Oxford Handbook for Philosophy of Religion, pp. 80-115.Ed. Wm. J. Wainwright. Oxford University Press, 2005.
Leslie, John. Universes. London: Routledge, 1989.
Linville, Mark. “The Moral Argument”. In Blackwell Companion to Natural Theology. Ed. Wm. L. Craig and J. P. Moreland. Oxford: Blackwell.
Martin, Michael, ed. The Cambridge Companion to Atheism. Cambridge Companions to Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
Maydole, Robert. “A Modal Model for Proving the Existence of God”. American Philosophical Quarterly 17 (1980): 135-42.
Nowacki, Mark. The Kalam Cosmological Argument for God. Studies in Analytic Philosophy. Amherst, N.Y.: Prometheus Books, 2007.
O’Connor, Timothy. Theism and Ultimate Explanation: The Necessary Shape of Contingency. Oxford: Blackwell, 2008.
Oderberg, David. “Traversal of the Infinite, the ‘Big Bang,’ and the Kalam Cosmological Argument”. Philosophia Christi 4 (2002): 303-34.
Oppy, Graham. Arguing about Gods. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
Plantinga, Alvin. The Nature of Necessity. Oxford: Clarendon, 1974.
Pruss, Alexander. The Principle of Sufficient Reason: A Reassessment. Cambridge Studies in Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
Sobel, Jordan Howard. Logic and Theism: Arguments for and against Beliefs in God. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.
Swinburne, Richard. The Existence of God. Ed. rev. Oxford: Clarendon, 2004 [publicado em português de Portugal como: Será que Deus existe? (Lisboa: Gradiva, 1998)].

Obras de nível introdutório
Boa, Kenneth and Bowman, Robert. Twenty Compelling Evidences that God Exists. Tulsa, Ok. River Oak, 2002.
Craig, William Lane. God, Are You There? Atlanta: RZIM, 1999.
Strobel, Lee. The Case for a Creator. Grand Rapids: Zondervan, 2004.

*Originalmente publicado como: “God Is Not Dead Yet.” In Christianity Today, Julho, 2008, pp. 22-27. Texto reproduzido na íntegra em reasonablefaith.org/site/News2?page=NewsArticle&id=6647. Traduzido por Wagner Kaba. Revisado por Djair Dias Filho.

TIRINHA 84

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

FAZENDO MINHAS AS PALAVRAS 5





Pequeno ensaio sobre a devastação
por Luiz Felipe Pondé


Neste pequeno ensaio pretendo dar uma versão, muito pessoal, do meu encontro com o pensamento conservador na minha experiência de formação.

Mas, antes de mais nada, o que é formação?

Entendo formação, sobretudo, como a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. Portanto, o próprio conceito de condição humana é princípio organizador da idéia de formação. Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos.

* * *

A formação não é o foco principal da educação no mundo contemporâneo, o que é uma pena.

Infelizmente, grande parte da vida acadêmica contemporânea sucumbiu ao medo e à preguiça, a ponto de poder dizer que hoje a educação é um misto de preguiça, oportunismo e medo. Na realidade, uma das idéias que têm dominado meu pensamento é que o medo tornou-se parte essencial da vida de quem se dedica a atividades de formação.

Certa feita, na faculdade de medicina, perguntei ao professor como um paciente portador de câncer terminal se via diante da possibilidade de estar indo em direção ao Nada. O professor foi taxativo: “O senhor está na aula errada, devia fazer filosofia”. Boa época aquela, em que professores não tinham medo dos alunos nem se preocupavam com teorias pedagógicas.

Hoje, já não acho que meu professor estivesse tão certo. A formação em medicina é uma boa chance de você se medir com essa emoção essencial da vida, o medo, enquanto as ciências humanas podem facilmente cultivar a covardia travestida de grandes e vazias aventuras teóricas sem carne ou sangue – e por isso mesmo sem riscos de se sujar com a vida, que está sempre imersa em carne e sangue. Tenho certeza de que grande parte do que penso hoje como filósofo é devida aos cadáveres que abri durante a noite, aos cérebros que espalhei sobre a mesa de metal, às pessoas que morreram pelas mãos de minha ignorância, e à estranha sensação de que algo de misterioso faz a ponte entre a matéria, sempre fracassada, espalhada sobre o metal, e a alma, sempre em espanto.

* * *

Vejo o advento da modernidade como se tivéssemos entrado no grande delírio da denegação, da denegação do mal – como os freudianos dizem –, de um modo cultural e universal. Isso criou uma espécie de fúria do homem moderno em se auto-afirmar como centro do universo, uma negação da sua condição.

Mas a formação que daí resultou – grosso modo dos jacobinos para cá – trouxe consigo um esgotamento dos instrumentos intelectuais para compreender o mundo. Simplesmente não tem mais elementos para lidar com o mundo tal como ele se apresenta. E o esforço para lidar com ele, a partir das categorias que temos à mão, é excessivo; por isso, o retorno, a reação perante todas as idéias que não estão alinhadas com esse pensamento, é violento, grosseiro.

Essa dialética sempre me chamou atenção. Eu tinha já uma percepção muito concreta do mal, apesar de não conseguir falar disso, quando estava na faculdade de medicina. Porque, antes de fazer filosofia, fiz medicina; depois, entre uma e outra, ainda quis fazer formação em psicanálise, pensando em salvar a carreira médica, mas depois mudei de idéia.

Quem fez essa passagem para mim foi Pascal. Fui fazer o doutorado em Paris – vinha de cinco anos de estudo, e queria escrever a tese sobre a concepção trágica do ser humano de Freud –, e quando cheguei ali meu orientador foi atropelado por um caminhão na A1 e morreu. Furou um pneu, ele parou no acostamento, abriu a porta, um caminhão passou e o levou. Como se diz em francês, ficamos todos “catastrofados”…

Fiquei órfão de orientador, na primeira semana de doutorado em Paris! E isso criou um vácuo em que comecei a ler outros autores que trabalhavam uma visão trágica. Comecei a ler Pascal, e não parei mais.

Em algum momento em que eu estava trabalhando com ele, alguma coisa começou a virar. Isso mudou completamente a minha forma de ver o mundo; não que tenha perdido de forma alguma a minha herança anterior, científica e biológica – tanto assim que continua presente no meu trabalho –, mas me levou às minhas reflexões atuais.

Devastação e ceticismo

E o que ficou do médico em mim, afinal? A consciência de um fracasso fisiológico essencial como condição humana. Esta experiência de fracasso é minha ontologia do humano.

E por que o medo? Porque conhecer é correr o risco de visitar mundos devastados. Visitar mundos devastados é contemplar a fronteira do sentido das coisas. O ceticismo (a dura suspeita da existência desse fracasso no plano do conhecimento) tem sido evidentemente uma ferramenta essencial.

Ceticismo, para mim, é a vigília contínua sobre este mundo em pedaços. Contra o domínio das teorias abstratas, escolho o risco da vida autoral. A coragem é virtude essencial quando se contempla a devastação.

* * *

Qual a relação entre este sentimento de devastação e o encontro com a tradição conservadora? A experiência humana fala de uma ontologia frágil; por isso, antes de tudo, devemos ter cuidado ao lidar com esta fragilidade.

Segundo a fortuna crítica [1], o pensamento conservador tem três grandes raízes, o ceticismo de David Hume (seu “Iluminismo às avessas”), em meados do século XVIII; a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa no final do mesmo século; e a viagem de Alexis de Tocqueville aos Estados Unidos (laboratório da democracia moderna nascente) na primeira metade do século XIX –
mesmo que nenhum dos três autores tenha usado especificamente o termo “conservador” em suas obras. Há controvérsias quanto ao estabelecimento destas origens, mas não vou me ater a elas porque não ferem o conteúdo deste pequeno ensaio.

Segundo Russel Kirk, os termos “conservatif” ou “conservative” [2] surgem na França nos primeiros anos do século XIX para se referir àqueles que se opunham à “era napoleônica” e à sua herança revolucionária. Grosso modo, o ethos da atitude conservadora era preservar as instituições políticas, sociais e morais que estavam no alvo dos desdobramentos de 1789. No limite, tratava-se de combater a dissolução das instituições e dos comportamentos ancestralmente cultivados.

Vemos, portanto, que o foco era uma defesa da sociedade em face da devastação em processo. Reencontramos assim, a oposição entre devastação e conservação a que fiz referência acima.

* * *

Este ethos me pareceu significativo [3]. A relação histórico-filosófica entre ceticismo e importância da ancestralidade data da Grécia [4]:
diante da dúvida acerca da operacionalidade da Razão [5], hábitos e costumes se revelam como opção contra o erro. Hábitos e costumes são comportamentos e instituições de razoável sucesso diante das pressões sofridas pela humanidade em sua agonia ancestral.

No restante deste pequeno ensaio, discutirei introdutoriamente alguns traços do que seria um “espírito conservador” ou mesmo uma atitude, ou sensibilidade, ou caráter conservador. Para tal, dialogarei com Russel Kirk em seu The Conservative Mind. Pessoalmente, gosto cada vez mais da idéia de um temperamento conservador [6].

Ao contrário de grande parte das pessoas que se aproximam da tradição conservadora, o que me levou à leitura e ao confronto com esta tradição (ou pelo menos com uma parte significativa dela) não foi qualquer sentimento religioso (apesar de tê-lo), mas sim minha experiência cética. Se não conseguimos justificar racionalmente o mundo (nem moral nem epistemologicamente) e incorremos facilmente em abstrações, como não nos destruímos ainda?

O “temperamento conservador”

1. Os problemas humanos são essencialmente morais e religiosos e não políticos, como pensa a tradição moderna de raiz iluminista francesa. Quando tentamos “resolver” a vida politicamente, incorremos facilmente em simplificações da realidade. A política é bem-vinda quando se apóia nos hábitos e não quando inventa soluções para a vida humana.

No fundo, somos seres atormentados pela falta essencial de sentido das coisas. Esta marca é moral e religiosa, não política. Suspeito que forças maiores do que nosso entendimento seja capaz de compreender marcam nosso destino. Todavia, esta suspeita se materializa muito mais, para mim, na adesão a hábitos que as supõem e as respeitam, do que a rituais que imaginam acessá-las ou abstrações racionais que visam a dissolvê-las.

2. Acredito profundamente na máxima “radicais amam a humanidade e detestam seus semelhantes”. Isso porque esses radicais se relacionam com uma idéia do humano que responde à homogeneidade de uma abstração lógica (suas abstrações de gabinete).

Ao mesmo tempo, tenho uma atração natural (sem sustentá-la em nada que postule uma “dignidade intrínseca do ser humano”) pelos seres humanos reais e sua rica e intratável heterogeneidade. A própria possibilidade de podermos estabelecer uma “lógica definitiva” do ser humano, me tornaria profundamente desinteressado pelos meus semelhantes. Relaciono esta variedade, como diz Kirk, com um certo mistério que perpassa esta multiplicidade.

3. Os seres humanos não são iguais; uns poucos são melhores do que os outros. Estas diferenças demandam tempo pra se revelar, mas são essenciais. A insistência em negar este fato (igualitarianismo) fere a relação entre as pessoas e a organização da vida.

4. Não existe “a liberdade” como idéia, mas apenas formas materiais que evitam a violência de uns sobre os outros. Homens não são ovelhas. No seu limite mínimo, a propriedade privada marca esta materialidade da liberdade possível; por isso, a tentativa de igualdade abstrata fere a defesa concreta contra a violência que visa a destruir a propriedade privada.

5. A famosa frase de Burke sobre a desconfiança para com “sofistas, calculadores e economistas” resume a dúvida conservadora contra designs abstratos da sociedade. Aqui a relação entre dúvida e hábito se revela na sua face mais evidente: engenharias (sofistas, calculadas ou econômicas) sempre põem em risco esse equilíbrio frágil da vida no tempo e no espaço duramente compartilhado. Se duvido dessas engenharias, por conseqüência duvido das mudanças calculadas por elas.

Em conseqüência…

6. Duvido da possibilidade de fabricarmos novos homens pela educação, legislação ou engenharias culturais de qualquer tipo. O homem não é passível de perfectibilidade projetada e acumulativa; daí a recusa da noção de “meliorismo” por parte dos conservadores.

7. Prefiro o conhecimento ancestral às “novidades da Razão”. Radicais desprezam a tradição, optam pelo império do racionalismo. O racionalismo desvaloriza o hábito ancestral em nome de sua força de cálculo. Neste sentido, a religião é preservada contra a sua crítica apressada.

8. A democracia direta é um risco e leva a fúria da sem-razão, travestida de “political levelling”, “nivelamento político”, para o interior do tecido cotidiano.

9. A idéia de justiça social, atacada também por David Hume, é um risco na medida em que dissolve a fronteira entre a violência da liberdade abstrata e o cuidado com esta violência presente na defesa irrestrita da propriedade privada.

10. Por último – resumo da posição burkeana e central para a definição de Kirk –, a sociedade é uma comunidade de alma que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram.

Os mortos são nossa sabedoria ancestral viva na memória e nos hábitos. Os vivos são o presente; diante da insegurança estrutural de nossa Razão, são responsáveis por legar aos ainda não nascidos o cuidado com a vida da humanidade, sob a ameaça ancestral de nossa ontologia do fracasso.

Luiz Felipe Pondé é Doutor em Filosofia Moderna pela USP, professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Escreve semanalmente no jornal A Folha de São Paulo. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp) e Crítica e Profecia (Editora 34).

Notas:
[1] Muller, J. Z. Conservatism, an Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, Princeton. 1997). Kirk, R. The Conservative Mind, from Burke to Eliot (Regnery Publishing, Inc., Washington DC. 2001). Id. The Conservative Reader (The Viking Portable Library, New York. 1982).
[2] Kirk, R. Edmund Burke, a Genius Reconsidered (Intercollegiate Studies Institute, Wilmington, 1997).
[3] A dúvida sistemática com relação ao alcance da Razão, marca do ceticismo filosófico, lega um sentimento de grande risco com relação aos malabarismos racionais diante da realidade. A dúvida conservadora de Burke com relação às engenharias sociais herdadas do jacobinismo se aproxima muito desta intuição cética. Ambas tendem a ser econômicas no que se refere à confiança nos produtos concretos destas engenharias (produtos da Razão que pretende moldar o mundo).
[4] Hankinson, R.J. The Sceptics (Routledge, London. 1995).
[5] É importante lembrar, contra o senso comum corrente, que o ceticismo filosófico desde a Grécia, passando por autores como Montaigne (séc. XVI), Pascal (séc. XVII) – naquilo em que ele “usa” o ceticismo -, Hume (séc. XVIII) e Oakeshott (já no século XX), atacam a validade da Razão, e não a validade de crenças ditas “religiosas”. Não porque essas devam ser preservadas, mas porque simplesmente são “fáceis” de ser atacadas (objeto de fé apenas), enquanto a Razão, sim, demonstra sua arrogância dogmática travestida de evidência universal. Por isso é tão comum, como por exemplo em Montaigne e Pascal, o convívio, até certo ponto, entre fé e ceticismo. Em Hume ou Oakeshott (para referências, ver nota 1), a fé está contida no hábito que conduz a vida para fora dos dogmas da Razão frágil. Em Burke, a fé se inscreve na validade da aceitação de uma dimensão de mistério na condução da história (Providência divina opaca à Razão de ethos jacobino).
[6] Não vou aqui citar o texto de Russel Kirk propriamente dito. Remeto o leitor para o The Conservative Mind (para referências, ver nota 1), págs. 8 a 10.

TIRINHA 83

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

FAZENDO MINHAS AS PALAVRAS 4





A natureza do homem
por Johannes Messner


I. O HOMEM
O objeto da ciência do direito natural é a ordem social, em que se condensam os direitos e obrigações jurídicas nascidas nas relações que se estabelecem entre os homens. Estas relações dão-se entre indivíduos, entre indivíduos e agrupamentos sociais e entre agrupamentos sociais. Assim, enquanto se refere à ordem social, o nosso estudo parece dever partir da sociedade como tal. É a própria peculiaridade desta que parece exigi-lo.
Com efeito, a sociedade possui um ser próprio, é independente dos indivíduos no seu agir; e o indivíduo, além de estar na total dependência dela para se desenvolver, tem que se subordinar ao seu querer. Afora o mais, a sociedade sobrevive aos homens: os Estados vivem muitas gerações de homens, as nações perduram por centenas de anos. E, finalmente, o bem da comunidade sobreleva de tal modo ao bem do indivíduo que, se necessário for, pode-se exigir do indivíduo que sacrifique à comunidade os seus bens e a sua vida.
É claro que a teoria da sociedade pode começar pela análise da sociedade como um todo, pois nela se trata de penetrar a natureza da mesma e de descobrir-lhe as leis do ser, da vida e da atividade. Mas, de fato, à medida que prosseguimos no estudo e nos aproximamos da razão de ser da sociedade, deparamos com o problema de saber em que consiste a realidade social e em que se baseia. A teoria da sociedade acabará por concluir então que todo ser social depende dos homens que o integram. Se indaga das forças vitais e do agir da sociedade, mais uma vez tropeça com os homens que, ao fim e ao cabo, se encerram em seu seio, operando e agindo conjuntamente. E se, enfim, pergunta pelo sentido da sociedade, já no limite último dos fins que lhe resta investigar, terá que responder a uma interrogação sobre o fim do homem; e a interrogação é esta: o que é o homem?
Esta é, portanto, a questão básica, para a qual a teoria da sociedade e a ética social têm que encontrar uma resposta decisivamente clara e insofismável, se querem atingir a natureza, fim e ordem da vida social. Por isso, é legítimo, para não dizer obrigatório, abrir a teoria da sociedade com a resposta ao problema do homem.
É certo que ambos os processos se justificam, desde que se utilizem de maneira a compreender adequadamente a realidade total. Mas, homem e comunidade são dois pólos desta realidade. Portanto, se o método empregado se revelar incapaz de abranger a totalidade da experiência no âmbito de um destes dois pólos, então é porque é deficiente do ponto de vista científico. O resultado, nesse caso, seria forçosamente um dogmatismo ideológico, em lugar de um realismo científico.
A teoria social do individualismo partiu do indivíduo como ser acabado em si mesmo e em si mesmo exclusivamente baseado quanto ao seu valor; mas nunca chegou realmente a um conceito de comunidade enquanto realidade portadora de uma essência, valor e fim superiores ao indivíduo. Em contrapartida, a teoria social de todas as formas de coletivismo parte do ser da sociedade, tomando-o por valor primário e incondicionado; mas sem compreender jamais a realidade total da pessoa humana, com os seus fins supra-sociais e o seu valor de ordem supra-social. Entretanto, nem o sistema de valores individualista nem o socialista, nem as ideologias sociais neles baseadas, foram, na prática, aplicados por completo; de resto, nunca o poderiam ser: a natureza humana não permite tanto. Foi por isso que, na teoria e na prática, sofreram modificações mais ou menos amplas.
Seja como for, não constitui objetivo desta exposição ocupar-se com esse problema. Já fizemos, noutro trabalho 1, uma investigação mais profunda nesse sentido. Demais, os programas e táticas dos grupos e partidos, que são arautos desses sistemas de valores, mudam. E não são as particularidades de tais programas o que constitui matéria de uma ética de direito natural; são-no antes as concepções sociais e sistemas de valores que lhes servem de fundamento.
Deve-se notar, porém, desde o início, que a indispensável crítica não significa de maneira alguma uma rejeição indiscriminada de todas as tendências e resultados dos movimentos sociais e formas da sociedade individualistas ou social-coletivistas, da Idade Moderna ou Contemporânea. O movimento liberal, com as suas exigências de liberdade em todos os setores do agir humano, redundou parcialmente numa insurreição sadia e justa contra ordenamentos e instituições obsoletas da vida social, econômica e política. No continente europeu, foi o instrumento da revolução contra o absolutismo, contra o Estado-polícia, contra a regulamentação mercantilista da vida econômica e social. Por outro lado, e pelo menos em parte, o movimento socialista, na medida em que removeu o centro de gravidade da ordem social para o lado oposto, deve ser entendido como reação contra os vícios da sociedade moderna, produzidos pelas forças individualistas. E, com efeito, estes movimentos podem registrar em todos os países êxitos reais e duradouros do seu esforço no sentido de uma reforma social, conforme o reconhecem os partidários de todas as concepções sociais.
Posto isto, voltemos ao que dissemos acima: o problema do ser e da ordem social sempre desemboca nesta pergunta: o que é o homem? Levanta-se, por conseguinte, o problema da natureza do homem. E, justamente por isso, ocupar-nos-emos dele nos próximos capítulos.

II. A NATUREZA DO HOMEM
Antes de mais nada, convém dar uma vista de olhos as concepções atuais acerca da pessoa humana; porque, dentro da moderna teoria da ciência (teoria do conhecimento e metodologia das ciências), há um fato inquestionável: e é que o pensamento científico está determinado por concepções, consciente ou inconscientemente defendidas. É por isso que, especialmente no âmbito das ciências sociais, o cientista tem obrigação de começar por uma autocrítica que lhe permita explicar-se devidamente sobre as suas próprias concepções fundamentais, pondo-as a salvo de quaisquer equívocos. Esta autocrítica far-se-á, no presente capítulo, a par de um confronto entre as concepções acerca da natureza do homem, hoje reinantes. Frise-se desde já, no entanto, que a nossa teoria do homem, bem como os princípios éticos nela fundamentados, não deriva das idéias que passamos a expor seguidamente, pois preferimos obtê-la mediante uma análise da realidade e da própria experiência. É esta análise que nos ocupará nos capítulos subseqüentes, fornecendo-nos, além do mais, o ensejo para abordar detalhadamente a questão do método da ética. Por outro lado, como hoje em dia os vários sistemas da teoria do homem se costumam apresentar a título de formas de humanismo, resolvemos aproveitar também esta expressão.
1. O HUMANISMO CRISTÃO
A primeira forma de humanismo a considerar é a que se vem denominando humanismo cristão. Corresponde a teoria tradicional do direito natural, iniciada por Agostinho, e baseia-se nos fatos e noções que se seguem.
1. A teoria tradicional do direito natural colhe na antropologia empírica, que elabora e ordena sistematicamente os dados de experiência da realidade humana, duas noções fundamentais: em primeiro lugar, o homem pertence ao reino animal pelo seu corpo; por outro lado, contudo, representa uma “espécie” única em sentido zoológico, pois todas as “raças” humanas são capazes de se cruzarem ilimitadamente.
A segunda noção que tomamos da antropologia empírica diz-nos que o homem é um ser provido de razão. O homem é homo faber, o único ser vivo que fabrica utensílios compreendendo a relação entre causa e efeito, graças a sua capacidade de abstração. É o único ser vivo capaz de se determinar conscientemente na sua conduta. E o seu poder de conhecer e autodeterminar-se define-o como animal rationale e homo sapiens, distinguindo-o essencialmente do mundo animal.
2. Da antropologia metafísica que, partindo da experiência, penetra a essência do homem, extrai a teoria tradicional outras duas noções. Primeiro, o homem possui uma alma. Em segundo lugar, e em conseqüência da sua natureza a um tempo corporal e espiritual, o homem é um ser social, isto é, um ser que só no seio da sociedade encontra o seu pleno desenvolvimento.
Para a teoria tradicional, a metafísica fundamenta-se na experiência, seguindo a convicção de que a metafísica só cumpre metodicamente a sua missão quando for capaz de relacionar as suas conclusões com todo o domínio da realidade experimental concernente ao seu objeto. Não há dúvida de que nenhuma metafísica poderia pretender resolver todos os seus problemas com uma certeza indiscutível. Mas também não é menos certo que qualquer metafísica que se feche parcialmente a experiência, tentando preterir o esclarecimento de fatos da realidade, cai em dogmatismos de um ou outro tipo, isto é, em conjeturas e afirmações sem cabal fundamentação filosófica ou empírica.
A antropologia metafísica da teoria do direito natural sustenta que a alma humana, ao contrário da alma animal, é de natureza espiritual, livre e imortal, sendo também a sede da razão. Daí vem a distinção essencial (dualidade) entre corpo e espírito: o corpo é de natureza material, a alma, de natureza espiritual; nenhum dos dois se pode considerar uma resultante do outro. Em conjunto, ambos formam a unidade substancial da natureza humana, em que a alma é o princípio das ações especificamente humanas, isto é, das ações próprias da essência da natureza humana. Em virtude da sua natureza simultaneamente corporal e espiritual, é o homem também essencialmente social: o desenvolvimento pleno da sua natureza, em conseqüência da falta de susceptibilidade de perfeição, está total e absolutamente condicionado, no homem individual, por uma vinculação a sociedade.
3. Na antropologia cristã, finalmente, encontra a teoria tradicional a sua inabalável certeza a respeito das noções, acima mencionadas, sobre a natureza do homem, especificada por uma alma espiritual. Referimo-nos a duas considerações relacionadas com a existência humana, que são do maior alcance para a teoria da sociedade. A primeira prende-se a realidade do pecado original, razão da possibilidade humana de errar, da perversidade da vontade e dos erros sucessivos que daí nasceram para a ordem da vida social (“questão social”). A segunda concerne ao fato de o próprio Deus ter assumido a natureza humana para entrar no mundo, corroborando na alma do homem a semelhança com a divindade, a testemunhar que o valor da pessoa, com o seu destino vinculado a alma espiritual (“dignidade da pessoa”), é superior a todo e qualquer valor terreno. Assim se explica que nem a sociedade, nem o Estado, nem a nação, nem a raça, nem o mundo inteiro, podem equiparar-se a este valor.
2. O HUMANISMO NATURALISTA
A idéia naturalista do homem, nas suas várias modalidades, opõe-se aquela que acabamos de explanar, de modos muito diversos. Em conjunto, resume-se nisto: 1. – uma crença no homem “natural”, isto é, no homem cuja finalidade da existência se limita a sua luta pela vida; 2. – a crença de que a realidade se confina aos limites da experiência; 3. – a rejeição da religião revelada.
Mas, além disso, seguindo-lhe os pressupostos e razões dadas na explicação da natureza humana – a sua antropologia –, podemos distinguir várias espécies de humanismo naturalista:
1. O humanismo racionalista
Esta corrente, bem como a sua antropologia, sobretudo em razão da sua importância no desenvolvimento histórico-cultural do pensamento naturalista, merece uma referência especial.
Em síntese, são três os princípios fundamentais em que assenta. O primeiro consiste na crença na capacidade universal da razão humana para compreender e transformar o mundo. É aquela crença que, desde os tempos de Comte (1798-1857), se foi progressivamente convertendo na convicção de que a ciência dispõe de um poder universal e absoluto. Em segundo lugar, vem a crença em que o homem, graças à sua natureza racional, é indefectivelmente bom quando encontra os pressupostos exclusivamente “naturais” do seu desenvolvimento; daí o proclamar o “regresso à natureza” (Rousseau, 1712-1778). A isto se acrescenta, em terceiro lugar, a fé na “lei do progresso” indefinido, em todos os domínios dos valores humanos e culturais: é a lei inicialmente anunciada por Saint-Simon (1760-1825) e Fourier (1772-1837). O ideal deste humanismo é o da personalidade que se realiza na harmonia do prazer e que não difere muito do que Bentham (1748-1832) expunha por essa época na Inglaterra, como “a máxima felicidade do maior número”.
As experiências feitas pela humanidade com a primeira e a segunda guerra mundiais demonstraram quanto a antropologia racionalista é contrária à realidade. Apesar de tudo, permaneceu a fé na ciência, com esperanças sempre renovadas pelo prodigioso progresso científico. Isto vale muito especialmente para as duas correntes que apontamos a seguir.
2. O humanismo científico
A teoria do homem e da sociedade formulada nesta concepção pretende ater-se exclusivamente às ciências naturais e às que, tendo o homem por objeto, se utilizam de métodos científicos, aceitando apenas o conhecimento empírico: assim, a psicologia, a sociologia e a etnologia.
É precisamente nos países anglo-saxônicos que alguns falam de um humanismo “científico-naturalista” (scientific humanism). O que move esta concepção é a esperança de que os sociólogos e os técnicos sociais venham a ser um dia capazes de realizar na organização da vida da sociedade e do Estado o mesmo que os naturalistas e os técnicos realizam no domínio externo da vida. Mas os precursores imediatos do cientismo como “concepção do mundo”, encontramo-los na Alemanha, pelos fins do século passado, entre os representantes de uma mundividência científico-naturalista. O certo é que, hoje em dia, o cientismo, que predominava apenas no mundo cultural anglo-saxônico, passou a ocupar também a primeira plana na Europa continental e, além disso, nas camadas intelectuais do mundo não-europeu. Um mundo, contudo, que em toda a parte está coberto pela sombra da angústia, pois é precisamente pelo abuso dos conhecimentos científicos que a subsistência da humanidade ou, ao menos, da cultura, se vê ameaçada de uma nova guerra mundial.
Com este humanismo científico combinam-se ainda, assumindo peculiaridades diversas, algumas teorias “científicas” sobre a natureza do homem. As principais são: a biológico-evolucionista, a psicanalítica, a utilitarista-pragmatista, a lógico-positivista e a econômico-social-determinista, a última das quais goza de favor absoluto junto do humanismo científico oriental.
Deve dizer-se, entretanto, que na base do cientismo de todas as teorias referidas está uma metafísica comum, se se entende por metafísica a adesão a certos postulados de pensamento, que não logram fundamentação alguma com os métodos das ciências naturais. De fato, o modo de conhecer próprio das ciências naturais limita-se ao mundo da experiência sensível; e, precisamente por isso, não autoriza qualquer posição cientificamente fundamentada no alcance dos seus métodos – capaz de negar uma realidade metafísica, que de longe ultrapassa aquela experiência. Mas, apesar de tudo, sucede que todo o cientismo crê poder demonstrar “cientificamente” que a aceitação de tal realidade (a autoridade sobre-humana da consciência, a liberdade da vontade, a alma espiritual, o Deus criador transcendente ao mundo) não passa de ilusão engendrada pelo homem. Cada uma das mundividências “científicas” antes mencionadas requer, por isso, uma crítica especial. É o que faremos em seguida.
3. O humanismo dialético-materialista
Na exposição da sua antropologia seguimos Lênin que com toda a razão se pretende ser o mais coerente representante do materialismo dialético. Não admira que se tenha confiado ao Instituto Marx-Engels de Moscou a tarefa de conservar e completar a tradição da interpretação leninista de Marx. Os princípios extraídos da obra de Lênin podem resumir-se nos seguintes termos: “O psiquismo, a consciência, etc., são o produto máximo da matéria altamente evoluída; uma função dessa complicada fração da matéria que se chama o cérebro humano”. “A negação materialista do dualismo espírito-corpo (monismo materialista) consiste em demonstrar que a existência do espírito depende da do corpo, considerando o espírito como algo secundário, como função do cérebro e um reflexo, enfim, do mundo externo”. Donde resulta ser a natureza do homem “matéria orgânica” altamente evoluída. “A matéria é o principal; a sensação, o pensamento, a consciência, são os produtos últimos da matéria organizada numa determinada forma”. Tal a doutrina do materialismo em geral, e, em particular, a de Marx e Engels.
A matéria orgânica é “o resultado de uma longa evolução” da “matéria em eterno movimento e transformação”: o resultado de uma evolução que consiste na “luta dos contrários”. Só “a luta dos contrários, que se excluem, tem caráter absoluto, como sucede com o movimento e a evolução” 1; e esta é a razão pela qual o materialismo deve ser dialético, isto é, deve “negar-se a reconhecer elementos imutáveis, qualquer essência imutável das coisas” 2. Toda a metafísica que se afasta do materialismo dialético, designa-a Lênin como “fídeísmo”, ou seja, como “uma doutrina que coloca o crer no lugar do saber” 3. Acontece, porém, que o “fídeísmo” do próprio materialismo dialético é, evidentemente, manifesto, pois, como veremos, os seus pontos essenciais apóiam-se em princípios sem fundamento, isto é, num dogmatismo.
4. O humanismo psicanalítico
Segundo a antropologia de Freud, o “mecanismo do espírito” do homem compõe-se de super-ego, ego e id: super-eu, eu e infra-eu (*). O último elemento compreende o domínio do instintivo, condicionado pelo corpo, isto é, a libido, com a sexualidade por força impulsora principal. O super-ego consiste no automatismo inibitório, em consonância com as normas de conduta fundadas na educação. Como o id, também o super-ego pertence inteiramente ao “inconsciente”. Esse super-ego, com a convicção que lhe é peculiar, da autoridade sobre-humana da lei da consciência, consiste na autoridade introjetada dos pais (ou pessoas responsáveis) que, desde a tenra infância, anterior à aquisição da auto-consciência, leva a criança a reprimir a satisfação arbitrária dos instintos, sobretudo as necessidades de excreção, facilitando-lhe a submissão às normas de conduta socialmente vigentes, inclusive as morais. O ego é o elemento consciente da natureza humana. Dentro do “mecanismo do espírito”, é, assim, o que se forma no comércio consciente com o ambiente social; e, não obstante desempenhar, em comparação com os outros dois elementos, um papel relativamente pouco importante na constituição da personalidade, é ele que decide, com o seu desenvolvimento, da integração da mesma.
Este conciso resumo das idéias fundamentais da psicanálise 4 é, para o fim que temos em vista, suficiente. A psicanálise freudiana nada sabe de uma alma espiritual e autônoma, na sua qualidade de essencialmente determinante da vida humana; por isso, como doutrina metafísica do homem, pertence à corrente da antropologia materialista. A nossa crítica não significa a rejeição da psicanálise como método de psicologia e de psicoterapia, pois, na realidade, para falarmos com R. Dalbiez, “a obra de Freud é a mais profunda análise dos poucos elementos humanos da natureza do homem, que a história conhece” 5.
5. O humanismo behaviorista
A antropologia desta corrente afirma, no dizer do psicólogo americano E. L. Thorndike 6, que, “graças às pesquisas que de há uns quarenta anos a esta parte se fizeram sobre a inteligência animal e sabendo-se o que hoje se sabe acerca do pensamento e faculdade humana de discernimento, não parece possível estabelecer uma diferença qualitativa, clara e geral, entre a capacidade intelectual do gênero humano e a dos animais inferiores”. Uma antropologia assim concebida é, como logo se intui, materialista: o homem é considerado como um animal superior sem alma espiritual.
Referindo-se à faculdade de discernimento, Thorndike chega a dizer que, “como hoje é sabido”, o homem constrói no intelecto associações, tal como o fazem os animais, se bem que em número muito maior; e que a sua capacidade de generalizar e deduzir se desenvolveu, por assim dizer, como um subproduto. Thorndike afirma ainda: “Köhler, Norman Maier, McDougal e outros foram levados finalmente à convicção” de que os chimpanzés, que usam bengalas, e os ratos, que se deixam conduzir pelo seu sentido auditivo, fazem “coisas do mesmo gênero” que “a chamada inferência silogística”. “Em geral”, se os fatos despertam o interesse dos animais e se o procedimento deles, em relação aos fatos, é vivo e multilateral, então os animais “parecem e são de certo modo” como homens…
Até aqui, Thorndike. Por nossa parte, escusado será advertir quanto semelhante processo de generalização e comparação contradiz toda e qualquer metodologia científica. Porque, comparar um “parecem” com um “são” e tomar por fundamento um vago “de certo modo”, – é tudo menos ciência. De resto, o que Thorndike, afirma, exprime a sua opinião pessoal; e nada tem a ver com a ciência uma simples opinião. Afinal, a antropologia behaviorista se funda inteiramente em dogmatismos e fideísmos preconcebidos.
6. O humanismo biológico-evolucionista
A melhor maneira de expor esta concepção é remetermo-nos a uma obra do professor Julian Huxley intitulada Evolution. Na teoria da evolução “chegou-se agora”, digamos assim, “a uma fase de síntese” 7. Huxley acaba por concluir que a evolução “é exatamente um produto de forças cegas como a queda de uma pedra na terra ou o fluxo e defluxo das marés. Mas somos nós mesmos quem deve dar-lhe um sentido, imitando os homens primitivos, que atribuíam vontade e sentimento aos fenômenos inorgânicos, como as tempestades e os tremores de terra. Se quisermos trabalhar para um fim no futuro do homem, então devemos formular esse fim. Os fins da vida são feitos, não achados”.
Entende este autor que todos os valores são condicionados pela evolução. Aceitar valores absolutos e a sua personificação em Deus teria sido um erro do homem: um erro que o progresso da ciência lhe permite reconhecer. Por outro lado, “o humanismo evolucionista pode tomar-se o centro de uma nova religião”, entendida esta como determinação e dever do homem no sentido de fazer frutificar as suas forças, ainda inexploradas” 8. Segundo a concepção desta antropologia materialista, o homem não passa de uma espécie altamente evoluída de vertebrados, “matéria vivente” e, como tal, simples resultado da evolução da “matéria cósmica”, numa determinada direção dentre muitas outras.
Um outro neo-darwinista, o professor D. M. S. Watson, confessa que é num fideísmo que se funda a antropologia materialista do neo-darwinismo: “A evolução em si mesma não é aceita pelos zoólogos por os seus pressupostos serem observados ou provados com argumentos logicamente suficientes, mas por corresponderem a fatos da classificação, da paleontologia ou da distribuição geográfica e porque nenhuma outra explicação é digna de crédito”. Mas, por que não? Watson dá esta razão: a teoria evolucionista é “aceita geralmente, não por se poderem aduzir provas logicamente contundentes da sua veracidade, mas porque a única outra explicação, a saber, a criação particular do homem, é claramente indigna de crédito” 9.
7. O humanismo neo-positivista
Para a antropologia do positivismo lógico, largamente dominante no pensamento filosófico da Inglaterra e da América, desde os tempos anteriores e posteriores à segunda guerra mundial, a alma do homem – segundo o professor Gilbert Ryle, um dos seus influentes representantes na Inglaterra –, embora concebida como imaterial, não é senão “o fantasma na máquina”. Para o positivismo lógico há conhecimento verdadeiro só em relação à realidade perceptível pelos sentidos, isto é, em relação a fatos verificáveis pela observação sensorial. Portanto, afirmações sobre uma realidade metafísica ou sobre valores, nada valem: nem como verdadeiras, nem como falsas; são sem sentido 10.
Em todo o caso, quer na vida pessoal quer na social, o homem não pode renunciar à aceitação e à afirmação de valores. Além disso, o fideísmo dos pressupostos ideológicos do positivismo lógico foi muitas vezes posto em evidência. Com efeito, temos, em primeiro lugar, que, segundo esses pressupostos, o próprio princípio de verificação não pode verificar-se empiricamente; é portanto, no sentido do positivismo lógico, uma afirmação metafísica e, por conseguinte, sem sentido. Os representantes do neo-positivismo não puderam até agora resolver essa dificuldade que lhes torna contestável todo o sistema. Em segundo lugar, eles unem estados espirituais – e ainda mais, conteúdos espirituais – àquilo que as percepções sensíveis de outros homens lhes fornecem. Ora, esses estados e conteúdos como tais, não é pela percepção sensível que são verificáveis. Por isso, só pondo-se em contradição com os seus pressupostos de pensamento é que o representante do neo-positivismo pode tentar entender-se com os outros homens no concernente a esses estados e conteúdos. Mas o positivismo lógico nunca tentou formular uma teoria social; todas as formas sociais, para ele, apenas podem ser a resultante das tendências de valor atuantes numa sociedade.
8. O humanismo existencialista
Apesar das múltiplas divisões em que se desdobra, o humanismo existencialista mantém sempre um cunho próprio que o distingue de todas as outras correntes de antropologia naturalista. Esse cunho especial consiste em afirmar que não podemos saber nada sobre a essência do homem, sendo-nos cognoscível apenas a sua existência. Por outras palavras: só o “como” do homem se pode conhecer, e não o “quê”.
Em contraste com o simples “estar-aí”, o existir “próprio” do homem seria condicionado pela realização de si mesmo no mundo histórico e, portanto, pela situação concreta de cada momento. Esta auto-realização liga-se à decisão do homem baseada na liberdade; e, por conseqüência, só é possível mediante um “projeto-de-si-mesmo”. Daí que, para esse existir, não possa haver nenhuma escala de valores universal. Quer dizer: só o seu próprio existir pode revelar ao homem a lei das suas próprias decisões. Como se vê, este existencialismo contesta a existência de uma ordem moral universal tomada na qualidade de ordem resultante da natureza (essência) mesma do homem. A oposição da antropologia existencialista à fundada no direito natural é patente: porque o princípio fundamental desta última, seja qual for a forma em que se apresente, reside na possibilidade do conhecimento da natureza e mesmo da sua essência e da ordem existencial própria do homem e da sociedade que ela implica.
Por muito importante que seja para a ética, em razão da sua nítida valorização anti-determinista da liberdade, e em razão também da exaltação do caráter consciente do existir propriamente dito, – a filosofia da existência limita-se quase exclusivamente à existência individual: atribui grande importância, sem dúvida, à existência humana, fundada na liberdade; mas, até agora, pouco contacto manteve com a esfera da natureza social do homem e com as questões da ordem social (sobre as novas tendências, ver cap. 39) 11.
9. O humanismo idealista
Enquanto o monismo (identificação essencial entre matéria e espírito) de feição materialista faz do espírito humano uma forma da evolução da matéria, o monismo idealista concebe o homem, e em geral todo o real, como forma evolutiva do espírito, sendo este a realidade essencial do mundo (hoje, esta filosofia é muitas vezes designada como psiquismo).
A filosofia do monismo idealista, na feição que lhe deu Hegel, é da maior importância para a teoria dá sociedade, uma vez que concebe o Estado como forma “superior” da auto-realização do espírito. É neste sentido que, “enquanto (o Estado) é o espírito objetivo, o indivíduo em si mesmo só tem objetividade, verdade e moralidade, como membro do Estado”. E assim, o movimento idealista conduz em linha reta ao princípio totalitário da “identificação do Estado com o indivíduo”, na expressão com que Gentile o formulou para o fascismo italiano 12. Havia nisto uma influência de Hegel, embora este tivesse certamente rejeitado toda forma de Estado moderno totalitário. Com efeito, segundo a concepção de Hegel, a história do mundo, em última análise, não é mais do que a evolução da idéia de liberdade. Seja como for, bem podemos dizer que o atual idealismo de Gentile 13, admitindo a existência do espírito só em dependência da ação e não como ser em si, podia achar apoio no pensamento de Hegel. Basta atentar nalgumas afirmações deste último: “o espírito é a verdade existente da matéria”; “o espírito só tem realidade na medida em que se contradiz a si mesmo”; e “é apenas aquilo que faz” 14.
A nova fórmula alemã da filosofia hegeliana, que exerceu a maior influência no domínio da filosofia social – o universalismo de O. Spann –, utiliza uma idéia parecida: a idéia da “ramificação do espírito”; e chega a uma metafísica do homem semelhante à de Hegel, concluindo: “o fato fundamental de toda a realidade social e o conhecimento fundamental de toda a ciência autêntica da sociedade é…, que não está no indivíduo a realidade propriamente dita, mas na totalidade; e que os indivíduos só têm realidade e existência enquanto membros do todo” 15.
NOTAS:
Parte I:
(1) Die soziale Frage im Blickfeld der Irrwege von gestern, der Sozialkämpfe von heute, der Weltentscreidungen von morgem, 6ª ed., 1956.
Parte II:
(1) Lênin, Materialism and Empirio-Criticism, 1908. Collected Works, ed. by A. Trachtenberg, authorized by the Lenin Institute, Moscow, trans. by D. Kvitko, 1927, págs. 26, 34, 52, 65 e segs., 191, 228, 323 e segs.
(2) Lênin, ibidem, pág. 220. Há uma outra versão dessa idéia fundamental da “dialética”: “Na doutrina do conhecimento, como em outros ramos da ciência, devemos pensar dialeticamente, isto é, não devemos considerar os nossos conhecimentos como algo de acabado e imutável; mas sim mostrar como o conhecimento se desenvolve pouco a pouco, partindo da ignorância, e como, de imperfeito e inexato, se torna a pouco e pouco perfeito e exato” (op. cit., pág. 77). Em tudo isto, Lênin segue de perto a Engels. “A natureza opera dialeticamente”, diz Engels; “o mundo, e particularmente a história, é um processo evolutivo, isto é, em perpétuo movimento, alteração, transformação, evolução; e este processo evolutivo não pode encontrar o seu término intelectual na descoberta de uma pretensa verdade absoluta” (Fr. Engels, Der Sozialismus als Utopie und Wissenschaft,1892, pág. 27-29; é digna de nota a posição aí tomada a respeito do materialismo dialético e a sua dependência em relação a Hegel). Sobre a importância de Engels para a interpretação de Marx, diz Lênin: “É impossível compreender o marxismo e interpretá-lo com exatidão, sem levar em conta todas as obras de Engels” (Lênin, The Teaching of Karl Marx, pág. 48).
(3) Lênin, op. cit., pág. 311. Sobre o fideísmo na antropologia do materialismo dialético, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz, págs. 305-315.
(4) Sigmund Freud, Gesammelte Werke (obras completas), I-XVIII, Londres, 1940. Sobre o aspecto filosófico e ético da psicanálise de Freud, cfr. Messner, Widersprüche in der menschlichen Existenz, 1952, 73-87; Kulturethik,36 e segs., 73 e segs.; e ainda K. Stern,The Third Revolution, 1951 (USA), tradução alemã, Die dritte Revolution, 1956.
(5) R. Dalbiez, Psychoanaliytical Method and Doctrine of Freud, 11ª ed., 1941, pág. 327.
(6) E. L. Thorndike, Human Nature and the Social Order, 1940, 288 e segs.
(7) J. Huxley, Evolution, The Modern Synthesis, 1942, pág. 13.
(8) Op. cit., pág. 576; do mesmo, Evolutionary Ethics, 1943, pág. 41 e segs., pág. 84, eEvolution in Action, 1953, pág. 149 e segs.
(9) British Association for The Advancement of Science, Report on 97th Meeting, 1929, págs. 88 e 95, mencionado no The Nineteenth Century, já citado.
(10) G. Ryle, A. J. Ayer e outros, The Revolution in Philosophy, 1956; além disso, R. Carnap,Philosophy and Logical Syntax, 1935; A, J. Ayer, Language, Truth and Logic 2ª ed., 1948; C. L. Stevenson, Ethics and Language, 1944; G. Ryle, The Concept of Mind, 1949, 2ª ed., 1950. Para a crítica, ver C. E. M. Joad, A Critique of Logical Positivism, 1950; F. Copleston,Contemporary Philosophy: Studies in Logical Positivism and Existentialism, 1956.
(11) Sobre a filosofia existencialista, vejam-se as conhecidas obras de Heidegger, Sartre e, em parte, de Jaspers, e, sobre a crítica à nova literatura, podem ver-se: F. J. Rintelen,Philosophie der Endlichkeit, 1951; Hans Meyer, Die Weltanschauung der Gegenwart, 1949, 430-476; Hans Pfeil, Existentialistische Philosophie, 1952; O. F. Bollnow,Existenzphilosophie, 4.a ed., 1955; Emmanuel Mounier, Einführung in die Existenzphilosophie (versão alemã de W. Richter), 1949, especialmente a crítica detalhada de Sartre; Joseph de Tonquédec, Une philosophie existentielle. L´existence d´après Karl Jaspers, 1945; J. M. Hollenbach, Sein und Gewissen. Eine Begegnung zwischen Martin Heidegger und Thomistischer Philosophie, 1945; Auguste Etcheverry, Le conflit actuel des Humanismes, 1955, que trata do humanismo marxista e racionalista, além do existencialista.
(12) G. Gentile, Origini e Dottrine del Fascismo, 1934.
(13) G. Gentile, The Theory of Mind as Pure Act, versão inglesa de H. W. Carr, 1922, págs. 20 e 27.
(14) Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821, págs. 187 e 343; Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften, 1830, pág. 389.
(15) O. Spann, Gesellschaftslehre, 3ª ed., 1930, pág. 562; Der wahre Staat, 3ª. ed., 1931, 33 e segs.

TIRINHA 82

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

FAZENDO MINHAS AS PALAVRAS 3





Antropologia Cristã
por Paul Evdokimov


Deus é soberanamente livre, o que significa mysterium fascinosum (absolutamente fascinante e misterioso para sempre). “O que se pode conhecer de Deus é manifesto”, mas “os homens mantêm a verdade prisioneira da injustiça” (Rm 1,18-19). Ora, “o Espírito Santo não teme nem despreza ninguém”: estas palavras de são Simeão querem dizer que Deus não é um senhor, e o homem, um escravo. Deus é a liberdade e o homem é filho desta liberdade divina; ele é, segundo os Padres, “as pedras do jogo de Deus”.
Quanto mais o santuário parece abandonado e profanado, mais o sim humano ao sagrado da vida ganha força e consistência, purificado no fogo de uma fé realmente livre. Os ateus militantes concorrem, a seu modo, para depurar a imagem de Deus. Sua crítica asfixiada por si mesma deixa espaços abertos às idéias criadoras dos pensadores cristãos, estimula a saltar, por explosões interiores, rumo a libertações definitivas. Se nos séculos passados o homem procurava evadir-se das formas adulteradas da religião estabelecida, hoje, quando o mundo moderno pesa sobre o homem com toda a sua força técnica e política, é no único refúgio da minoria crente que o homem pressente a dignidade humana e sua liberdade, porque “onde está o Espírito, ali está a liberdade”.
Não se trata de reformas na Igreja; tal como a vemos, ela é milagre e santuário. Trata-se da metanóia, da transformação do ser de todo crente. Por ser receptáculo do Pentecostes, não se instala em lugar algum. Homo viator, sente sob seus pés “três mil braças d’água”, mas conhece lugares neste mundo onde os pesos são ainda maiores, porque “em Deus só existe sim”. O fim da época constantina significa o fim dos grandes corpos históricos e a era feliz da fé apostólica das testemunhas. O monaquismo e o sacerdócio régio dos fiéis prenunciam a síntese cristã dos últimos tempos.

A filantropia de Deus
Ao pedido de um pagão que lhe mostrasse seu Deus, são Teófilo de Antioquia responde: “Mostra-me teu homem e eu te mostrarei meu Deus”.[l] Queria dizer que o homem, “criado à imagem de Deus”, reflete o mistério divino e que ambos são indizíveis. Quando Deus moldou o homem Adão, “ele olhava o Cristo homem, o Cristo que deveria ser um dia o que eram agora este barro e esta carne”. [2] A profunda razão da encarnação não vem do homem, porém de Deus, de seu desejo de se tornar homem e de fazer da humanidade uma teofania, local amado de sua presença. A sensibilidade litúrgica capta-o admiravelmente e chama Deus de Filantropo, isto é, Amante dos homens. Seu amor inclina-se para o máximo grau de comunhão; com ou sem a queda, Deus criou o mundo para nele tornar-se homem e para que o homem se tornasse “Deus pela graça”, participando das condições da existência divina: a imortalidade e a integridade casta de seu ser.

A constituição do ser humano
O espírito e a carne

A Bíblia desconhece o dualismo grego de duas substâncias em luta: o corpo, prisão da alma. Conhece apenas o conflito moral entre o desejo do Criador e os desejos da criatura, entre a santidade-norma e o pecado-perversão. A oposição entre o homo animalis e o homo spiritualis opera-¬se na totalidade de seu ser. Conjunto indivisível, espírito encarnado, o homem é essencialmente um “ser participante”, a ponto de são Pedro assim definir a meta de sua vida: “Que vos torneis participantes da natureza de Deus” (2Pd 1,4). Homo viator, na “situação de passagem”, ele realiza, por suas participações, sua semelhança, seu parentesco com o celestial ou então com o demoníaco; inflecte, num ou noutro sentido, todo o plano material.
A alma vivifica o corpo, dele faz carne viva, e o espírito pneumatiza, espiritualiza o todo do ser humano, tornando-o homem espiritual. O espírito não é uma terceira parte (corpo, alma, espírito), mas princípio de qualificação. Exprime e se manifesta através do psíquico e do corporal, qualificando-os, na medida de seu domínio efetivo. O ascetismo é justamente uma imensa cultura, verdadeira ciência que tem como fito tornar o corpo e a alma transparentes e sujeitos ao espiritual. Em contrapartida, o homem pode “extinguir o espírito” (1Ts 5,19), impor silêncio à fonte de sua vida, ter pensamentos carnais e reduzir-se a simples carne animada, carne do dilúvio, presa dos infernos.

A noção bíblica do coração
O coração ao qual a Bíblia se refere não coincide com o centro emocional dos psicólogos. Os judeus pensavam com o coração. Centro metafísico, integra ele todas as faculdades do ser humano; a razão, a intuição e a vontade nunca são estranhas às opções e simpatias do coração (a lógica e as razões do coração às quais se refere Pascal). Irradiante e tudo penetrando, esconde-se em sua própria e misteriosa profundeza. O “conhece-te a ti mesmo” refere-se, antes de tudo, a esta profundeza: “entra em ti, e aí encontras Deus, os anjos e o reino”, dizem os espirituais.
“Quem pode conhecer o coração?”, pergunta Jeremias e o Senhor responde: “Eu, Deus, perscruto o coração e sondo os rins” Jr 17,9-10), o que significa: só ele penetra nesta esfera obscura para a consciência do subconsciente ou do inconsciente. São Pedro fala do homo cordis abscondi¬tus, “o homem oculto no íntimo de seu coração”. E é neste nível insondável que se encontra o eu humano. Seu mistério, à imagem de Deus, acha-se muito bem designado pela palavra de são Gregório de Nissa: “Na ‘incognoscibilidade’ de si próprio, o homem manifesta a, marca do indizível”. [3] Ao Deus absconditus (oculto, misterioso em sua essência) corresponde sua imagem, o homo absconditus.
“Onde está o teu tesouro, aí também estará teu coração” (Mt 6,21): o homem vale pelo que vale o objeto de seu amor e os desejos de seu coração. A “oração de Jesus”, chamada “oração do coração”, faz do coração o local da presença perpétua do Cristo. O evangelho e a ascese conferem ao coração a primazia hierárquica na estrutura do ser humano; tinge-a de sua saúde ou de suas enfermidades. Contrapondo Leonardo da Vinci, todo conhecimento é filho do grande amor. Amo ergo sum (amo, portanto sou) designa uma intencionalidade original, inata e como que iman¬tada: “Tu nos fizeste para ti e nosso coração estará inquieto até que repouse em ti”, confessa santo Agostinho. [4] “E por ti somente que vivo, falo e canto”. [5] “Deus colocou no coração humano o desejo dele”, [6] inspirando são Gregório a dizer: “Tu, a quem o meu coração ama”.

A pessoa humana
O Fundamento Trinitário

A revelação da pessoa é obra do cristianismo. Vem do alto, do dogma trinitário. Cada pessoa divina é uma doação recíproca subsistente no face a face e na circumincessão[8] das três. Neste co-esse (ser com), a Pessoa existe para a comunhão, existe por ela essencialmente. Em sentido estrito, a Pessoa só existe em Deus. O homem carrega a nostalgia inata de tornar-se “pessoa” e não a realiza senão na comunhão, participação ao personalismo trinitário de Deus.
“Fazer e, fazendo, fazer-se”, [9] forma filosófica que a teologia transforma nesta outra fórmula: “fazer-se, superando-¬se”; não mais sum, porém sursum. [l0] E a transcendência incessante do eu em direção do Tu divino, “cada começo gerando novo começo”. [11] Neste plano, nossa pessoa, nosso eu, não nos pertence como propriedade própria, recebemo-la na ordem da graça que a perfaz. São Máximo explica: “Identidade (a si mesmo, a sua verdade icônica) pela graça”. O eu mais profundo, o elemento mais pessoal e exclusivo é dom.

O Fundamento Cristológico
No século vindouro, segundo são João (l Jo 3,2), “seremos semelhantes a ele”. Sim, porque o homem é modelado segundo seu arquétipo divino, o Cristo. A vida em Cristo desde já opera a passagem do ser natural ao ser crístico.
Em Cristo, o divino une-se ao humano, e o ponto de sua comunhão é a pessoa divina do Verbo. Nesta comunhão, a consciência humana de Jesus coloca-se no interior da consciência divina.
No homem, é sua pessoa humana o ponto da comunhão com o divino e é no interior de sua consciência humana que se coloca a consciência divina: “Nós viremos e nele estabeleceremos nossa morada” Jo 14,23). Tal realidade permite a são Paulo dizer: “Não sou mais eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim” (GI 2,20), e aspirar para sua missão pastoral: “Que o Cristo seja formado em vós” (Gl 4,19). O homem “cristóforo”, portador de Cristo, revela-se “cristofania”, manifestação do Cristo nele.

Realização da Pessoa
No plano natural, a consciência de si mesmo só é descoberta e conhecida pela mediação da esfera social. Aí todo ser humano é indivíduo: categoria biológica e social. E dotado de centro psicológico de integração que faz gravitar o todo em torno de si. Centro egocêntrico, é tentado a se confinar no individualismo. Trata-se de rudimento da pessoa que ainda não supera o indivíduo: uma potencialidade de pessoa.
Pessoa é categoria espiritual. Se o indivíduo é uma parte individualizada do todo na natureza, em compensação, o todo da natureza está incluído na pessoa. O indivíduo é um dado natural, cidadão do Estado e da sociedade; a pessoa é membro do reino de Deus, pressupõe a transcendência do natural em direção de resposta criadora ao apelo divino. “O homem, dizia são Basílio, é criatura que recebeu ordem de se tornar deus”, [12] o que significa, segundo são Máximo: “reunir pelo amor a natureza criada (humana) à natureza incriada” [13] (a graça divina). É o modo pessoal e sempre único de existência, atingindo o estado da “nova criatura” em Cristo: a santidade. O indivíduo e a pessoa opõem-se no mesmo ser como duas qualificações. Charles Péguy dizia que o indivíduo é o burguês que todo homem carrega em si, a fim de vencê-lo. O indivíduo, do qual se diz ter uma “forte personalidade”, não passa muitas vezes de “típica” impressão do já visto, que se pode classificar em tipos psicológicos ou em exemplares caracterológicos. Um santo impressiona por seu rosto pessoal, único no mundo. Nunca visto anteriormente.

A liberdade
Vontade é função da natureza e carrega seus desejos; por este motivo, o ascetismo cultiva, antes de tudo, a renúncia da vontade, a alforria de toda necessidade vinda da natureza. Em contrapartida, a liberdade decorre da pessoa e dela faz o senhor de toda escravidão e de toda necessidade natural. “Deus honrou o homem, conferindo-lhe a liberdade, a fim de que o homem pertença propriamente àquele que o escolheu”, [14] diz são Gregório de Nissa. São Máximo vai ainda mais longe; [15] para ele, a própria necessidade de escolher é indigência, o perfeito está acima da opção, ele gera o bem. Produz suas próprias razões em vez de suportá-las. Assim, os atos mais livres e os mais perfeitos são aqueles nos quais já não existe opção. [16]
Esta liberdade é salvaguardada integralmente pela graça que se aproxima da alma em segredo, sem jamais obrigá-la. “O Espírito Santo não gera nenhuma vontade que lhe resista. Só transfigura pela divinização aquela que o deseja”. [17] Projeto vivo de Deus, o homem é chamado a decifrar-se e, neste sentido, a criar livremente seu destino. “O homem foi gerado segundo a liberdade pelo Espírito, a fim de poder mover-se em si mesmo”. [18]
Santo Antão [19]distingue as três energias que se confrontam no homem: divina, humana e demoníaca. A autonomia humana “encapsula” o homem fechado em si mesmo, instável e problemático. A heteronomia é a vontade demoníaca, estranha ao homem. A teonomia não é simples dependência ou submissão, mas sinergismo, comunhão, amizade: “Não mais vos chamo de servos, mas vos chamo de amigos” Jo 15,15). Acima da ética dos escravos e dos mercenários, o evangelho coloca a ética dos amigos de Deus. E justamente quando nossa liberdade e nossa atuação instalam-se dentro do agir divino, que encontram a única condição na qual podem expandir-se em plenitude. A fé nunca é simples adesão intelectual, nem submissão cega, mas fidelidade da pessoa à Pessoa. Cada vez que se trata das relações entre Deus e o homem, a Bíblia recorre às relações do matrimônio e seu epitalâmio.
Ao dizer fiat à vontade de Deus, identifico-me com os desejos do Ser amado, a vontade divina torna-se a minha: “Não sou mais eu que vivo, é o Cristo que vive em mim”. Deus nos pede a realização da vontade do Pai, como se fosse nossa própria vontade. E este o sentido das palavras: “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”. “Deus nos amou primeiro”, sem motivo, e já neste amor fez-nos pressentir algo de sua liberdade divina. Ama-nos gratuitamente, sem nenhum mérito nosso e, assim, seu amor já é dom que inspira e suscita a liberdade de nossa própria resposta.
A sabedoria de Deus, em suas vertiginosas fantasias, no deleite do “jogo divino” (Pr 8,31) com os filhos do homem, só pode “imagInar seres e sua raça,deuses: “Vós todos sois deuses, filhos do Altíssimo”, diz o Senhor, e, neste caso, segundo são Simeão, o Novo Teólogo, “Deus só se une a deuses”. Eles receberam como dom algo que lhes é próprio, algo que só vem do livre movimento de seus corações. Somente esta liberdade, somente o livre amor revestem o homem da “veste nupcial” dos esponsais divinos. São Gregório de Nazianzo exclama no auge da admiração: “Realmente, o homem é um jogo de Deus”. [20] Porque podemos dizer “não seja feita a tua vontade” é que podemos dizer sim. Mas é preciso que este sim se gere em segredo e na fonte de nosso ser. Aquela que o pronunciou em nome de todos é uma Virgem, Mãe dos viventes, Fonte vivificante. Seu fiat não procede unicamente de submissão pura e simples de sua vontade, mas é pronunciado por todo o seu ser, como expressão de sua sede e fruto de sua oração.
Deus não dá ordens. Dirige convites, lança apelos: “Ouve, Israel”. Aos decretos dos tiranos corresponde uma surda resistência; ao convite do Senhor do banquete, a alegre aceitação “dos que têm ouvidos”. O eleito é aquele que abre livremente a mão e recebe o dom. “Eles virão gritando de alegria sobre os altos de Sião, afluirão para o trigo, para o vinho novo, sua alma será como um jardim bem regado” (Jr 31, 12)
Nestes “vasos de barro” Deus insuflou a liberdade e colocou-os no tempo. O ser criado, inacabado, pressupõe margem temporal onde pode perfazer-se, inventar-se, à imagem do Existente livre. E se o malogro é possível, se a hipótese da recusa está implicada no ato criador de Deus, é porque a liberdade dos “deuses”, seu livre amor, constitui a essência da pessoa humana: “Eu te desposarei para sempre… e conhecerás Javé. Eu te amei com amor eterno, virgem de Israel” Jr 31,1); e até nesta palavra: “Sede fecundos, frutificai”, ouvimos o apelo à manifestação da nova criatura.
A palavra latina persona, assim como a palavra grega prósopon, significa, inicialmente, “máscara”. Por conseguinte, este termo contém em si toda uma filo da pessoa humana. Demonstra claramente a inexistência de ordem humana autônoma, porque existir é participar do ser ou do nada. Nesta participação, o homem realiza o ícone de Deus, ou a careta demoníaca de um símio de Deus. O homem não tem fisionomia estática. Na encarnação, Deus não é mais somente Deus. Ele é Deus-homem. O homem também não é mais somente homem, mas homem-deus, ser deificado. São Gregório de Nissa exprime-se claramente: “A humanidade compõe-se de homens. Com rosto de anjo e homens que trazem a máscara do animal”. [21] Todo espiritual “não cessa de acrescentar, até o fim de sua vida, um fogo ao fogo”. [22] Conseqüentemente, o homem pode reativar a chama do amor e mostrar a semelhança; pode também acender o fogo da geena, construir o ponto da dessemelhança, o inferno. Pode, através de um “não”, romper seu ser em infernais separações como pode converter seu “sim” no infinito das uniões.

Imagem e semelhança de Deus
Resumindo o pensamento dos Padres da Igreja, infinitamente rico e matizado, podemos dizer que cada faculdade do espírito humano (inteligência, liberdade, amor, criação) reflete a imagem, mas esta é essencialmente o todo humano centrado no espiritual, e cuja peculiaridade é a de se superar para lançar-se no infinito de Deus e nele aquietar sua nostalgia. A santidade nada mais é do que a sede inextinguível, a densidade do desejo de Deus. Todo limite, ensina são Gregório de Nissa, contém em sua essência um “além”, sua própria transcendência, e, por este motivo, a alma só encontra repouso no infinito atual de Deus. [23] Os santos são almas de desejo.
Esta nostalgia é inata, acha-se em germe por ocasião da destinação inicial, e os Padres da Igreja reforçam que o Cristo retoma e revivifica o que foi interrompido pela queda. A imagem da cura é uma das mais freqüentes no evangelho; é até normativa: a ressurreição é a cura da morte. Por este motivo, a criação postula a encarnação a fim de fazer progredir e conduzir o sinergismo do agir divino e do agir humano, rumo ao dia da parusia, quando o germe chega à maturação final. O projeto inicial. en arche (no princípio) coincide com seu telos (realização ), a arqueologia com a escatologia. Da “árvore a vida” edêmica, pela eucaristia onde o fruto é novamente dado, dirigimo-nos “para a mesa sem véu”, o festim do reino. [24] Da perfeição inicial, frágil, porque inconsciente, caminhamos para a perfeição consciente, à imagem da perfeição do Pai celeste. A imagem, fundamento objetivo, atrai a semelhança subjetiva, pessoal. O germe – “ter sido criado à imagem” – conduz à eclosão: “existir à imagem” do Existente. A “Deus é amor” corresponde amo, ergo sum do homem. “O que de maior acontece entre Deus e a alma humana é o amar e ser amado”. [25]

A enfermidade e a cura
Antes da queda, a vida animal era exterior ao ser espiritual do homem; aberta e voltada para ele, mantinha-se na expectativa de sua própria espiritualização-humanização (Adão “dando nome” aos seres e às coisas) A queda nos sentidos precipita os acontecimentos e acrescenta ao ser humano a vida animal. [26] Os Padres orientais explicam que é o homem espiritual à imagem de Deus, o ser sobrenaturalmente natural que é primordial e normativo, e que o “homem simplesmente natural” é acrescentado por acidente. O biológico-animal aparece como estranho à verdadeira natureza do homem, porque ele se encontra assumido antes de sua espiritualização, antes que o homem tivesse chegado ao poder e ao domínio do espiritual sobre o material. O erro vem de identificação prematura, precoce. Clemente de Alexandria, por exemplo, vê o pecado original no fato de “nossos antepassados terem-se dado à procriação antes do termo”. [27] Boa em si, a natureza animal, devido à perversão da hierarquia dos valores, constitui então decadência para o homem. “Nada há de mal nas coisas, não fosse o seu mau uso que provém da desordem do espírito”. [28] “Não é o desejo, mas determinado desejo (concupiscência) que é mau”. [29] É a faculdade axiológica de apreciação, o espírito de discernimento que é atingido: [30] “Fora de Deus, a razão torna-se semelhante ao animal e aos demônios, e, afastada de sua natureza, deseja o que lhe é estranho”. [31]
A ascese aspira à verdadeira natureza, à “paixão impassível” Sua luta nunca é contra a carne, mas contra as perversões dela, contra a concupiscência ilegítima que é contra a natureza. A fonte, o espiritual, está envenenada, visto a norma ontológica ser transgredida pelo espírito. Para são Gregório Palamas, as paixões que vêm da natureza são as menos graves, exprimem apenas o peso da matéria devido ao malogro de sua espiritualização. A fonte do mal situa¬-se na duplicidade do coração onde o mal e o bem encontram-se, singularmente, lado a lado “fábrica da justiça e da iniqüidade”. [32] Em função da “Imagem”, o homem sempre procura o absoluto, mas a “semelhança”, fora de Cristo, fica inoperante, o pecado perverte a intencionalidade da alma e esta procurará o absoluto nos ídolos, matará sua sede nas miragens, sem poder ascender a Deus. A graça, reduzida ao estado potencial, detida em sua efusão, [33] só pode atingir o homem pela via sobrenatural – sobrenatural não em relação a sua verdadeira natureza, mas em relação a seu estado doentio de pecado. A verdade do homem é anterior a sua duplicidade; volta a ser dominante, desde que o homem seja colocado em Cristo. A visão “de baixo” deve ser completada pela visão “do alto” que mostra ser o pecado secundário, como toda negação. Mal algum poderá jamais apagar o mistério inicial do homem, pois nada existe que possa apagar nele a marca indelével de Deus.
A patrística realça o papel da primeira destinação: “Pelo Cristo, a integridade de nossa natureza é restaurada” porque ele “representa em figura (arquétipo) o que nós somos”, [34] e, inversamente, em Cristo, tornamo-nos semelhantes a ele. Os sacramentos refazem a natureza inicial do homem, sua integridade adâmica; o Espírito Santo a nós é restituído na sagração batismal e na crisma da unção. A penitência é tratamento terapêutico de purificação e a eucaristia introduz o fermento de imortalidade e de incorruptibilidade. O próprio poder da ressurreição une-se à natureza humana. Podemos dizer que a vida ascética e mística é a tomada de consciência cada vez mais plenificada da vida sacramental. Sua descrição clássica sob a mesma imagem das núpcias místicas mostra a idêntica natureza de ambas.

A vocação litúrgica do homem
Na liturgia de são João Crisóstomo, o canto do Que¬rubicon, “nós que representamos misticamente os querubins”, mostra no homem o ícone do ministério angélico de adoração e oração. É o momento também do ingresso dos anjos na celebração litúrgica. O homem associa-se a seu canto, primeiramente no Trisagion: “Deus santo, Deus forte, Deus imortal”, e, em seguida, o Sanctus resume o tema da anáfora, o louvor eucarístico trinitário. Os homens e os anjos unem-se no mesmo movimento de adoração: “Santo; Santo, Santo é o Senhor dos exércitos. O céu e a terra estão cheios de tua glória”. O conteúdo do século futuro “cheio de glória” começa desde agora, aqui na terra.
O santo não é um super-homem, mas aquele que encontra e vive sua verdade, enquanto ser litúrgico. A melhor definição do homem nos vem do culto litúrgico: o ser humano é o homem do Trisagion e do Sanctus: “Canto a meu Deus, enquanto eu viver”. Santo Antão fala de um médico que dava seu supérfluo aos pobres e o dia inteiro cantava o Trisagion, unindo-se ao coro dos anjos. [35] É por esta “ação” que o homem é “posto à parte”, tornado santo. Cantar a Deus é sua única preocupação, seu único labor: “ e vinha do trono uma voz que dizia: ‘Louvai a Deus vós todos seus servidores” (Ap 7,11). Nas catacumbas, a imagem mais freqüente é a figura da mulher em oração, a “orante”. Representa a única atitude verdadeira da alma humana. Não basta servir-se da oração, é preciso tornar-se, ser oração encarnada. Não basta dispor de alguns momentos de louvor, é preciso que a vida inteira – todo ato, todo gesto, até o sorriso do rosto humano – se torne canto de adoração, oferta, prece. Oferecer não o que se tem, mas o que se é. Assunto de predileção na iconografia, bem traduz a mensagem do evangelho: chaire, “alegrai-vos e adorai”, “que toda criatura que respira dê graças a Deus”. É o maravilhoso ali¬jamento da carga do mundo, quando desaparece o peso do próprio homem. “O Rei dos reis, o Cristo, aproxima-se” e é o “único necessário”. A doxologia da oração dominical: “o reino, o poder e a glória”, torna-se a essência da liturgia. É para corresponder a sua vocação de ser litúrgico que o homem é carismático, aquele que carrega os dons do Espírito, o próprio Espírito Santo: “Fostes selados pelo Espírito Santo… vós que Deus adquiriu para seu louvor e glória” (Ef 1,14). Não seria possível explicar mais exatamente a essência e o destino litúrgicos do homem.
A meditação patrística orienta-se sempre para o opus Dei, a liturgia. “Aproximo-me, cantando-te”, exclama alegremente são João Clímaco; idêntica alegria manifesta-se na palavra alada de são Gregório de Nazianzo: “Tua glória, ó Cristo, é o homem que colocaste, tal um anjo, e cantor de teu brilho… é por ti que vivo, falo e canto… a única oferenda que me resta de todas as minhas posses”. [36] Na mesma linha, ouvimos são Gregório Palamas: “Iluminado, o homem atinge os cumes eternos… e já nesta terra se torna todo milagre. E mesmo sem estar no céu, concorre com as potências celestes, ao canto incessante; mantendo-¬se na terra, qual anjo, conduz a Deus todas as criaturas”. [37] A Igreja é mistagógica, ela introduz graciosamente em seu milagre, oferece-o a todos: “Reunidos em teu templo, vemo-nos desde já na luz de tua glória celeste”.
A melhor evangelização do mundo, o mais eficaz testemunho da fé cristã, é este canto litúrgico pleno, a doxologia que sobe das entranhas da terra e por onde passa o sopro poderoso do Paráclito, o único que converte e cura.

Notas:
[1]. A Autólico I, 2.
[2]. Tertuliano, PL 2, 802.
[3]. PG 44, 155.
[4]. Conf I, 1.
[5]. São Gregório de Nazianzo, PG 36, 560 A.
[6]. São Máximo, o Confessor, PG 91, 1312 AB.
[7]. PG 44, 801 A.
[8]. Circumincessão: compenetração mútua das três pessoas divinas na unidade de sua essência e de sua vida.
[9]. Renouvier, Le personnalisme.
[10]. Gabriel Mareei, Homo viator, p. 32; Du refus à l’invocation, p. 190.
[11]. São Gregório de Nissa, PG 46, 57 B.
[12]. São Gregório de Nazianzo, PG 36, 560 A.
[13]. PG 91, 1308 B.
[14]. PG 36, 632.
[15]. PG 91, 16 B.
[16]. Cf. Lavelle, Traités des valeurs, p. 155; Les puissances du moi, p. 325.
[17]. São Máximo, PG 90, 281.
[18]. lbid., 91, 1345 D.
[19]. Filocalia, I
[20]. PG 37, 771.
[21]. PG 44, 192 CD.
[22]. São João Clímaco, PG 88, 664 A.
[23]. PG 44, 401 B.
[24]. Ap 22,1-2.
[25]. Calisto, PG 147, 860 AB.
[26]. Santo Isaac, o Sírio, Hom. 3.
[27]. Strom. III, 18.
[28]. São Máximo, PG 90, 1017 cd
[29]. Dídimo, o Cego, PG 39, 1633 B.
[30]. São Basílio, PG 29, 408 A.
[31]. São Gregório Palamas, Homilia 51.
32. Hom. Spirit. XV, 32.
[33]. Metropolita Filareto de Moscou, Discours et sermons I, 5.
[34]. São Gregório de Nazianzo, PG 37,2.
[35]. PG 65, 84.
[36]. PG 37, 1327.
[37]. PG 150, 1081 AB
Fonte:
Capítulo da obra: «O Sacramento do Amor», pp. 55-70. Ed. Paulinas. SP, 1989.