domingo, 12 de dezembro de 2010

SHEPARDIANDO



Crônicas de motel – Sam Shepard



Trilha sonora: Art Blakey's Jazz Messengers with Thelonious Monk 1957



Seu telefonema de despertar veio às 5:30 da manhã. Agora já era uma rotina. Ele atravessou o gramado entre o motel e o Kettle Pancake House. A figurinista passou correndo por ele na luz escura da manhã. Estava contente por estar sozinha Ele sabia pela maneira como ela corria. Nunca parecia tão alegre, sentada no cenário.
Deixou cair 15 cents na caixa de metal vermelha e tirou uma cópia do “The Austin American Statesman”. Deu uma olhada no Sonoplasta e no Treinador de Cães debruçados sobre o café, um em frente ao outro, dentro do restaurante. Cumprimentou-os com a cabeça quando entrou e pegou um reservado no fundo. Preferia tomar café sozinho. Só ele e o jornal. Pediu waffle simples e café. Quatro policiais falavam do rodeio no balcão atrás dele. O jornal parecia totalmente dedicado a punhaladas sem importância. De Panhandle ao Golfo, pessoas estavam sendo apunhaladas: em frente aos bares, em campo aberto, em carros roubados, atrás de farmácias. Ele terminou seu waffle em silêncio. Deixava um gosto de ovo em pó nos dentes.
Atravessou o mesmo gramado em seu caminho de volta ao motel. A mesma rota que fizera todas as manhãs, durante um mês. A grama alta tocava como o Texas inteiro. A luz estava mudando rapidamente.
Cruzou o salão esperando alguma correspondência. Sua caixa estava vazia. O gerente do motel olhava em transe desenhos animados coloridos. Podia ver seu motorista esperando por ele lá fora. Andando passo a passo.
Deslizou para o banco traseiro de um Cadillac cinza. Dois atores falavam febrilmente sobre o teatro grego. Mantiveram a conversa por quilômetros. Ele permanecia olhando silenciosamente a parte de trás do chapéu preto de cowboy do motorista. Havia três palitos usados, socados na fita do chapéu. Um desses tipos de fita de chapéu de crina de cavalo trançado como as que os presos fazem.
A estrada parecia excessivamente traiçoeira por alguma razão. Extra alta. Inclinada de um jeito peculiar, mais como uma pista para aviões pequenos. As casas de fazenda pareciam mal localizadas. Como se pertencessem aos subúrbios ou como se seus proprietários quisessem que parecessem casas que pertenciam ao subúrbio. Pequenas experiências num gramado. Uma família de veados de porcelana branca. Bebedouros de pássaros com enormes bolas de natal verde-metálicas e vermelhas entre eles. Pequenas lembranças domésticas terminando bruscamente num oceano de campo arado.
Os atores continuavam conversando, usando tons emocionais em suas vozes para indicar um ao outro suas profundas convicções. Às vezes, ele sentia que estavam tentando convencer mais a si próprios do que um ao outro. O motorista estava silencioso. Relaxado. Ele foi primeiro vaqueiro e depois caminhoneiro. Não tinha absolutamente nenhuma opinião sobre os gregos e nem mesmo a mínima aspiração de tê-la. Mantinha um punho sobre o volante enquanto o outro descansava. Seus olhos pareciam ter arado milhões de acres.
Entraram em Uhland. Os trailers tinham tomado toda a cidade. Duzentos figurantes perambulavam esperando que alguém os alimentasse. Procurou seu trailer e encontrou-o estacionado junto a uma pastagem. Seu figurino o aguardava. Parecia exatamente a roupa que estava vestindo, com uma versão esvaziada de si próprio. Trocou a roupa que vestia pela do figurino e sentiu-se exatamente o mesmo. Talvez um pouco mais rígido. Talvez, também, mais limpo. Pensou se pretendiam que ele atuasse como ele mesmo. Se era por isso que o haviam contratado. Sentou na mesa de fórmica e olhou para a estrada. Dois assistentes passaram com as palavras HOBBSMIRACLE REVIVAL CRUSADE (Cruzada do Renascimento do Milagre de Robbs) em letras vermelhas maiúsculas pintadas nas laterais. Perguntou-se quem seriam os motoristas, se acreditavam em Deus ou se estavam apenas dirigindo para outros que acreditavam em Deus.
Durante todo o dia, ele trabalhou na motocicleta atrás do carro da câmera. Manteve uma distância constante. Quando o carro da câmera aumentava a velocidade, ele aumentava a velocidade da Kawasaki. Nunca saiu do foco. De vez em quando, a terra o levava para os lados de fora dos olhos. Amplas faixas de luzes lançadas para baixo, de uma altura inacreditável, apunhalando o horizonte como em algumas pinturas religiosas italianas. Tentou manter a atenção no trabalho. Sobre o que era a cena que estavam rodando. Onde se encaixava na continuidade. Ele estrava dirigindo para matá-la? A Estrela? O Personagem? A Mulher? O Personagem que estava representando deveria dirigir para matar o Personagem que ela estava representando? Não conseguia tirar os olhos do pesado pára-choque de metal enferrujado do carro da câmera. Um Assistente de Direção estendeu um pequeno pisca-pisca eletrônico preto com uma luz vermelha. Uma piscadela significava que a velocidade do carro da câmera estava aumentando. Duas piscadelas – diminuindo. Três vezes queria dizer parar. Era aquele que ele ter a certeza de se lembrar. Aquele das três vezes. Havia apenas um intervalo de 3 metros entre a roda da frente da moto r aquele pára-choque metálico enferrujado. A 100 quilômetros por hora, o significado das três piscadelas era importante de ser lembrado. Mas por que ele queria matá-la? Até agora ele pensava que sabia, mas subitamente aquilo lhe pareceu estúpido. Era apenas uma função do roteiro ou o Personagem tinha alguma razão? Tentou parecer soturno e determinado, olhando dentro da objetiva. Podia ver seus olhos refletidos na lente. Parecia uma representação. Largou tudo. Apenas dirigia a moto e se esqueceu da atuação. Começou a gostar do passeio. O diretor gritou para ele através de um megafone: “Parece que você está se divertindo demais! Deve parecer soturno e determinado! Você está se dirigindo para matá-la!”
O Cameraman continuava levantando um, dois ou três dedos a diferentes intervalos. Outro sistema de código, este relacionado com a objetiva. Um dedo era igual a uma tomada ampla. Dois, uma tomada média e três, uma tomada fechada. Ele tentava não olhar para os dedos. Para ele um dedo significava “razoavelmente tranqüilo”, dois igualava “razoavelmente tenso”, três – “extremamente tenso”. Gostaria que não lhe tivessem dito o que os dedos significavam. Não lhe faria bem saber. Ele não estava fazendo nada diferente, não importando que objetivas estivessem usando, não importando quantos dedos eles levantavam. Então pra que lhe contar? O que ele precisava saber era por que seu Personagem queria matar o Personagem dela, em primeiro lugar? Alguma coisa sobre Cristo, eu acho. Estava no roteiro, em algum lugar. Alguma coisa sobre ela ser Cristo, ele pensando que ela era Cristo por alguma razão. Por que pensaria que ela era Cristo? Não era burro. O Personagem não era burro. Por que pensaria aquilo sobre ela? Lembrou do Evangelho Segundo São João, onde Cristo disse aos Judeus: “A razão pela qual não entendeis minha linguagem é que vós não entendeis meu pensamento.” Estava passando pelo carro da câmera a 130 na Kawasaki. Toda a equipe estava acenando enlouquecidamente para ele diminuir a velocidade. Não os viu. O Diretor jogou seu chapéu para o alto. A estrada parecia limpa e morta. Lembrou-se de Cristo outra vez. Quando Ele disse para os caras que queriam que Ele provasse seus milagres em território inimigo: “Meu tempo ainda não chegou. Vocês não sabem quando seu tempo chegará porque não sabem de onde vêm ou para onde vão. Mas eu sei ambos. E este não é meu dia de morrer.”
A Kawasaki girou para o lado. A correia de borracha preta desprendeu-se do guidom e o pegou no pescoço. Viu a cara do motorista do Carro da Câmera olhando para ele. Longe dele. Olhando estupidamente. O céu mais alto que já tinha visto. A sensação de estar bem embaixo do Paraíso. A distância. A umidade da pele. Metal rasgando. Pessoas impotentemente afastadas. Nenhum som. A clara visão do Tempo parado. Então, sons canalizados, isolados da Terra. A Grande Gralha de Cauda Rindo. O seio de diamante negro da Callhandra.* Batendo. Dançando entre os fulcros. Carvalho Vivo Sem Folhas.
Subitamente, ele apareceu para si mesmo. Viu-se num relance. Não havia mais dúvida sobre quem era o Personagem.

3/79
Shiner, Texas

* Pássaro norte-americano, do gênero Sturnella. No original, Meadow Lark.
(N. do T.)

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