sábado, 13 de agosto de 2011

O TEMPO É AGORA.



“... O artista é sem querer o porta voz dos segredos espirituais de sua época e, como todo profeta, é de vez em quanto inconsciente como um sonâmbulo. Julga está falando por si, mas é o espírito da época que se manifesta e, o que ele diz, é real em seus efeitos.
Ulisses é um documento humano de nosso tempo, e mais, é um segredo. É bem verdade que ele pode libertar os que estão presos espiritualmente e que sua frieza consegue congelar, até a medula, não só o sentimentalismo, mas o próprio sentimento normal. Mas estes efeitos salutares não esgotam a sua essência. Dizer que foi o próprio diabo quem apadrinhou a obra é uma observação espirituosa interessante, mas não satisfaz. Há vida na obra, e a vida nunca é apenas má e destrutiva. Na verdade, tudo o que de imediato podemos apreender neste livro é negativo e solúvel, mas pode-se pressentir algo intangível, uma intenção secreta que lhe dá sentido e, portanto, valor. Seria este mosaico colorido de palavras e imagens “porventura” simbólico? Por Deus, não estou me referindo a uma alegoria, mas ao símbolo como expressão de uma essência inatingível. Neste caso deveria ao menos bruxulear um sentido oculto em algum lugar nesta tecidura estranha. Aqui e acolá deveriam ressoar sons já ouvidos em outros tempos e em outros lugares, talvez em sonhos raros ou nas obscuras sabedoria de raças esquecidas. Não se pode contestar esta possibilidade. Mas eu, pessoalmente, não consegui encontrar a chave. Pelo contrário, o livro me parece ter sido escrito no estado de mais plena consciência; não é sonho, nem revelação do in consciente. Penso até que mostre um propósito mais forte e uma tendência mais exclusiva do que o Zaratustra de NIETZSCHE ou a segunda parte do Fausto de GOETHE. Talvez por isso Ulisses não possua a característica de obra simbólica. ( ...) Pois “simbólico” significa que uma essência poderosa e inconcebível reside oculta no objeto, seja espírito ou mundo; e que o homem faz desesperados esforços para enquadrar numa expressão o segredo que lhe escapa. Para tanto deve-se dirigir ao objeto com todas as suas forças mentais e penetrar todos os véus reluzentes, a fim de trazer a superfície o outro que jaz oculto nas desconhecidas profundezas.
Mas o que perturba no Ulisses é que, atrás de milhares e milhares de véus, nada existe. Não se dirige ao espírito e nem ao mundo. Frio como a lua, observando de uma distância cósmica, permite que a comédia da criação, da existência e do desaparecimento siga o seu curso. Espero sinceramente que Ulisses não seja simbólico; pois do contrário não terá atingido seu objetivo. Qual o segredo tão ansiosamente guardado e encoberto com cuidado impar durante essas intoleráveis 735 páginas? Melhor não despender energias e tempo com infrutíferas caças ao tesouro. Nada pode haver atrás disso, pois do contrário a nossa consciência estaria novamente comprometida com o espírito e o mundo, perpetuando para sempre os Srs. Daedalus e Bloom e enganados pelas dez mil aparências. É exatamente isso que Ulisses quer evitar: ele quer ser um olhar lunar, uma consciência desligada do objeto; não escravizado por deuses , nem pela luxuria; não preso por amor ou ódio, por convicção ou preconceito. Ulisses não diz isto, mas age assim: o despreendimento da consciência é a meta que começa a se manifestar por trás da cortina nebulosa deste livro. Este é certamente o verdadeiro segredo da nova consciência cósmica que não é revelada aquele que leu conscienciosamente as 735 páginas, mas àquele que durante os 735 dias contemplou o seu mundo e a sua própria mente através dos olhos de Ulisses.”

( C G JUNG. Ulisses um Monologo/ tradução de Maria de Moraes Barros, in Obras Completas de C G Jung Vol. XV. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985, p.107-8)



O que é o cinema, hein? Aparentemente não há lista de livros dos mais infilmáveis que não deveria constar o Ulysses de James Joyce. Pelo menos era o que pensava eu até assistir essa versão dirigida por Joseph Strick em 1967.
Não vou dizer que As Alucinações de Ulisses (o título no Brasil) beira a genialidade, porque ele é mesmo genial em cada pedacinho de seu ser. Sim um ser, um ser que transcende a necessidade do pensamento como narração em off a todo segundo, que mostra a ansiedade de seus personagens através de imagens claras e até por pequenas jóias sonoras que resumem todo o pensamento daquele instante, como é o magnífico momento em que Leopold entra no restaurante e, ao ver as pessoas comendo, ouve o som dos porcos a chafurdar, na fantástica transposição do Odisseu homérico com seus amigos transformados em porcos na ilha de Circe. Outra coisa que transmite a excelência da linguagem captada no filme é falta de distinção do que acontece na realidade de Bloom e o que é meramente fruto do fluxo de consciência joyceano, ou seja, a fantasia de seus pensamentos, a quebra total do espaço-tempo.
O filme deixou-me com uma vontade tremenda de reler o livro, o até então inominável joyceano, especialmente com O Gado do Sol, o capítulo 14, que é uma das coisas mais absurdas que li na vida. Absurda no sentido de inigualável, de um êxtase literário sem precedentes, o orgasmo supremo da linguagem e forma literária. Calha que o ápice do filme venha justamente das seqüências extraídas de O Gado do Sol/Circe, só lembrando que o livro de Joyce tampouco segue a linearidade dos acontecimentos da saga homérica, que vai e volta, retomando e deixando os elementos dos Cantos de Homero a seu bel-prazer. E, para variar, o mítico monólogo final de Molly Bloom também não peca pela falta de excelência.
Grande Adaptação. É por esses e outros momentos sublimes que tenho igual paixão por cinema e literatura.

Nota 1: Dez anos depois de Strick ter dirigido essa adaptação, ele voltou no tempo e dirigiu uma adaptação de O Retrato do Artista Quando Jovem, o debut de Stephen Dedalus na literatura, adaptação esta que não consegui que desse as caras em nenhum lugar do mundo acessível por mim. O Stricker era cheio dessas adaptações literárias, em 70 dirigiu uma versão de Trópico de Câncer do Henry Miller a qual nunca consegui colocar as mãos também, assim como O Balcão em 1963 baseado na peça homônima de Jean Genet.

Nota 2: Confissão, sempre gostei mais do Stephen Dedalus do que de Leopold Bloom.

Nota 3: E qual a minha surpresa em dar de cara com a Fionnula Flanagan em seu primeiro papel no cinema como Gerty e a representação de Nausícaa, a princesa que encontrou Ulisses nu numa praia e o ajudou a voltar para a casa e, consequentemente, para sua Penélope. Hehehe Essas coisas me assustam.

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