sábado, 20 de agosto de 2011

TENTAREI IR NA CONTRAMÃO.



BREVIÁRIO DE DECOMPOSIÇÃO
de Cioran

“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.”

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NÃO RESISTÊNCIA À NOITE

No começo, acreditamos avançar para a luz; depois, fatigados por uma marcha sem fim, deixamo-nos deslizar: a terra, cada vez menos firme, não nos suporta mais: abre-se. Em vão buscaríamos perseguir um trajeto para um fim ensolarado: as trevas se dilatam ao redor e dentro de nós. Nenhuma luz para iluminar-nos em nosso deslizamento: o abismo nos chama e nós o escutamos. Acima ainda permanece tudo o que queríamos ser, tudo o que não teve o poder de elevar-nos mais alto. E, outrora apaixonados pelos cumes, depois decepcionados por eles, acabamos por venerar nossa queda, apressamo-nos a cumpri-la, instrumentos de uma execução estranha, fascinados pela ilusão de tocar os confins das trevas, as fronteiras de nosso destino noturno. Uma vez o medo do vazio transformado em volúpia, que sorte evoluir no lado oposto do sol! Infinito às avessas, deus que começa sob nossos calcanhares, êxtase ante as rachaduras do ser e sede de uma auréola negra, o Vazio é um sonho invertido no qual nos dissipamos.

Se a vertigem se converte em nossa lei, portamos um nimbo subterrâneo, uma coroa em nossa queda. Destronados deste mundo, arrebatamos seu cetro para honrar a noite com um fausto novo.

(E, no entanto, esta queda – certos instantes de petulância à parte – está longe de ser solene e lírica. Habitualmente afundamos em uma lama noturna, em uma obscuridade tão medíocre como a luz... A vida é apenas um torpor no claro-escuro, uma inércia entre luzes e sombras, uma caricatura desse sol interior que nos faz crer ilegitimamente em nossa excelência sobre o resto da matéria. Nada prova que sejamos mais que nada. Para sentir constantemente esta dilatação na qual rivalizamos com os deuses, em que nossas febres triunfam sobre nossos pavores, precisaríamos nos manter em uma temperatura tão elevada que acabaria conosco em poucos dias. Mas nossos relâmpagos são momentâneos; as quedas são nossa regra. A vida é o que se decompõe a todo momento; é uma perda monótona de luz, uma dissolução insípida na noite, sem cetros, sem auréolas, sem nimbos.)”

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“Para quê?”, adágio do Fracassado, de um simpatizante da morte... Que estimulante, quando se começa a sofrer seu assédio! Pois a morte, antes que nos absorvamos demasiado nela, nos enriquece, e nossas forças crescem ao seu contato; depois, exerce sobre nós sua obra de destruição. A evidência da inutilidade de todo esforço, e essa sensação de cadáver futuro erigindo-se já no presente, e preenchendo o horizonte do tempo, acabam por embotar nossas idéias, nossas esperanças e nossos músculos, de tal sorte que o aumento de impulso suscitado pela recentíssima obsessão converte-se, uma vez implantada irrevogavelmente no espírito, em uma estagnação de nossa vitalidade. Assim esta obsessão nos incita a tornar-nos tudo e nada. Normalmente, deveria colocar-nos ante a única escolha possível: o convento ou o cabaré. Mas quando não podemos fugir dela nem pela eternidade nem pelos prazeres, quando, fustigados no meio de nossa vida, estamos igualmente longe do céu e da vulgaridade, transforma-nos nessa espécie de heróis decompostos que prometem tudo e não cumprem nada: ociosos esbaforindo-se no Vazio; carcaças verticais, cuja única atividade se reduz a pensar que deixarão de ser...”

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“É completamente legítimo conceber o momento em que a vida sairá de moda, caindo em desuso como a lua ou a tuberculose depois do abuso romântico: irá coroar o anacronismo dos símbolos despojados e das enfermidades desmascaradas; voltará a ser ELA MESMA: uma fadiga sem prestígios, uma fatalidade sem brilho. E é facilmente previsível o momento em que nenhuma esperança surgirá mais dos corações, em que a terra será tão glacial como as criaturas, em que nenhum sonho virá embelezar a imensidade estéril. A humanidade terá vergonha de procriar quando vir as coisas como são.”

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“Somos os grandes decrépitos, oprimidos pelos antigos sonhos, para sempre inaptos para a utopia, técnicos de fadigas, coveiros do futuro, horrorizados pelos avatares do velho Adão. A árvore da Vida não conhecerá mais primaveras: é madeira seca; com elas se farão ataúdes para nossos ossos, nossos sonhos e nossas dores. Nossa carne herdou o fedor das belas carcaças disseminadas pelos milênios. Sua glória nos fascinou e a esgotamos. No cemitério do Espírito repousam os princípios e as fórmulas: o Belo está definido e ali jaz enterrado. E também o Verdadeiro, o Bem, o Saber e os Deuses. Ali apodrecem todos (a história: âmbito onde se decompõem as maiúsculas e, com elas, os que as imaginaram e veneraram).”

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