terça-feira, 23 de novembro de 2010

ANTICRISTO

As tentações de Jesus – parte 4
por francisco razzo
por Bento XVI*

Vejamos agora a segunda tentação, cujo significado exemplar é, sob muitos pontos de vista, o mais difícil de se compreender. A tentação deve ser concebida como uma espécie de visão, na qual na realidade é resumido um especial perigo do homem e da missão de Jesus. Em primeiro lugar deparamo-nos com algo estranho. O diabo cita a Sagrada Escritura para atrair Jesus à sua armadilha. Ele cita o salmo 91, 11s, que fala da proteção que Deus concede ao homem crente: “Ele deu ordens aos seus anjos para te protegerem em todos os caminhos. Tomar-te-ão nas palmas das mãos, não aconteça ferires nas pedras os teus pés”. Estas palavras adquirem um peso ainda maior na medida em que são ditas na Cidade Santa, no lugar sagrado. De fato, o salmo citado está ligado ao Templo; aquele que o reza espera para si proteção no Templo, pois a casa de Deus deve valer como lugar especial da proteção divina. Onde mais poderia o homem que crê em Deus sentir-se mais seguro que no espaço sagrado do Templo? (Veja mais detalhes em Gnilka, Das Matthäusevangelium I, p. 88s). O demônio mostra ser um conhecedor da Escritura, que sabe citar o salmo com rigor; todo o diálogo da segunda tentação aparece formalmente como uma discussão entre especialistas da Escritura: o demônio aparece como teólogo, observa a propósito Joachim Gnilka.
Solowjew apegou-se neste motivo na sua “breve narrativa do Anticristo”: o Anticristo recebe o doutoramento honoris causa em Teologia pela Universidade de Tubinga; ele é um grande especialista em Ciências Bíblicas. Com esta representação, Solowjew exprimiu drasticamente o seu ceticismo a respeito de um certo tipo de erudição exegética do seu tempo. Não se trata de um não a respeito da explicação científica da Bíblia enquanto tal, mas sim de uma necessária e salutar advertência a respeito dos seus possíveis desvios. De fato, a explicação da Bíblia pode tornar-se um instrumento do Anticristo. Mas isso não é dito apenas por Solowjew: veja-se a afirmação presente na própria história da tentação.
De aparentes resultados da exegese científica se entreteceram os piores livros que destruíram a figura de Jesus, que desmontaram a fé. Hoje a Bíblia é cada vez mais submetida ao critério da assim chamada visão moderna do mundo, cujo dogma fundamental é que Deus não pode agir na história e que, portanto, tudo o que diz respeito a Deus deve ser relegado para o domínio do subjetivo. Então a Bíblia já não fala de Deus, do Deus vivo, mas somos apenas nós que falamos e que determinamos o que Deus pode fazer e o que nós queremos ou devemos fazer. E o Anticristo nos diz, com os gestos da mais elevada cientificidade, que uma exegese que lê a Bíblia na fé no Deus vivo e que aí o procura e escuta, é fundamentalismo; somente a sua exegese, segundo dizem puramente científica, na qual Deus nada diz e nada tem a dizer, é que está à altura do tempo.
O debate teológico entre Jesus e o demônio é uma disputa que diz respeito a todos os tempos acerca da correta explicação da Escritura, cuja questão hermenêutica fundamental consiste na pergunta a respeito da imagem de Deus. O debate acerca da explicação é, em última análise, o debate acerca de quem é Deus. Esta luta pela imagem de Deus, de que se trata no debate sobre a explicação válida da Escritura, decide-se, porém, concretamente na imagem de Cristo: é Ele, que permaneceu sem o poder do mundo, realmente o Filho do Deus vivo? Assim, a questão estrutural do notável diálogo sobre a Escritura entre Cristo e o tentador leva diretamente à questão do conteúdo. De que se trata afinal? Esta tentação foi relacionada com o motivo do “pão e jogos”: depois do pão devia ser oferecida a sensação. Porque a saciedade corpórea não é evidentemente suficiente para o homem; quem não quiser deixar entrar Deus nem no mundo nem no homem tem de oferecer o prurido de excitantes sensações, cujo tremor substitui e reprime a emoção religiosa. Mas isto não deve ser pensado neste lugar, tendo em vista que aparentemente não são aqui pressupostos espectadores.
A questão de que aqui se trata aparece na resposta de Jesus, que é de novo retirada do Deuteronômio: “Não deves tentar o Senhor teu Deus!” (Dt 6, 16). Há no Deuteronômio uma alusão à história de como o povo de Israel esteve ameaçado de morrer de sede no deserto. Levanta-se uma rebelião contra Moisés, que é uma rebelião contra Deus. Deus deve mostrar que é Deus. Esta rebelião contra Deus é assim descrita na Bíblia: “Eles submeteram Deus à prova, ao dizerem: o Senhor está ou não está no meio de nós?” (Ex 17, 7). Trata-se, portanto, daquilo que já fora antes recordado: Deus deve submeter-se à prova.
Ele é “provado”, como se experimentam mercadorias. Ele deve submeter-se às condições que nós declaramos necessárias para a nossa certeza. Se Ele não atende à proteção prometida pelo salmo 91,
então não é Deus. Então Ele próprio falsificou a sua própria palavra e a si mesmo. Está assim perante nós a grande questão de como conhecemos ou não conhecemos a Deus, de como o homem se situa diante de Deus e como O pode perder. A altivez de querer transformar Deus num objeto ou de querer submetê-Lo às nossas condições laboratoriais não pode encontrar Deus. Isso pressupõe que negamos Deus enquanto Deus, na medida em que nos colocamos acima d’Ele. Porque nos despojamos de toda a dimensão do amor, do escutar interior e apenas reconhecemos como real o que é experimentável e disponível à nossa mão. Quem assim pensa faz-se a si mesmo Deus e assim degrada não apenas a Deus, mas também a si mesmo e ao mundo.
A partir desta cena no pináculo do Templo abre-se também o olhar para a Cruz. Jesus não se atirou do pináculo do Templo. Ele não saltou para o abismo. Ele não tentou a Deus. Mas Ele desceu ao abismo da morte, à noite do abandono, à exposição dos que nada valem. Ele ousou dar este salto como ato do amor de Deus para com o homem. E por isso Ele sabia que neste salto, em última instância, só podia cair nas boas mãos do Pai. Assim se manifesta o real sentido do salmo 91, o direito àquela última e ilimitada confiança de que lá se fala: quem segue a vontade de Deus sabe que nunca deixará de ter Sua proteção ante todo e qualquer horror com que se confronta. Sabe que o fundamento do mundo é o amor e mesmo aí, onde ninguém pode ou quer ajudá-lo, pode continuar a confiar Naquele que o ama. Tal confiança para a qual a Escritura nos autoriza e para a qual o Senhor ressuscitado nos convida é, no entanto, algo completamente diferente da aventureira provocação de Deus que pretenderia fazer dele nosso escravo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário