sexta-feira, 5 de novembro de 2010

ATO DE PENSAR 2





EVANGELHO E CULTURA – I
por Eric Voegelin


A Comissão Directiva honrou-me com o convite de proferir uma conferência acerca de “Evangelho e Cultura”.[1][1] Se bem compreendi a intenção dos membros da comissão queriam escutar o que um filósofo tem para dizer acerca da dificuldade do Verbo em se fazer ouvir no nosso tempo e, se ouvido, tornar-se inteligível para aqueles que o querem escutar.

Porque seria o evangelho vitorioso nas circunstâncias helenistico-romanas da sua origem? Porque atraiu uma élite intelectual que elaborou o significado do Evangelho em termos de filosofia e, deste modo, criou uma doutrina Cristã? Porque pôde esta tornar-se religião do Império Romano? Como pôde a Igreja, atravessado este processo de aculturação, sobreviver ao Império Romano e tornar-se a crisálida, da civilização Ocidental, como lhe chamou Toynbee? E o que ofuscou esta força cultural triunfante, de modo a que, hoje, as igrejas estão na defensiva contra os movimentos intelectuais dominantes do nosso tempo e abaladas por uma crescente inquietação no seu interior?

Uma ordem de trabalhos impressionante, devo dizer. E, contudo, aceitei-a porque de que serviria a filosofia se nada tivesse para dizer acerca das grandes questões que os homens do nosso tempo lhe podem, justificadamente, colocar? Mas se considerarmos a amplidão do desafio, compreendereis que não posso prometer mais do que uma tentativa humilde para justificar a confiança da Comissão e para salvar a honra da filosofia.

I

Orientei as questões iniciais para o tema do evangelho e da filosofia e, começarei por apresentar uma instância antiga e outra recente em que o tema se tornou tópico.

Ao absorver a razão na forma da filosofia helenística o evangelho da ekklesia tou theou primitiva tornou-se a Cristandade da Igreja. Se a comunidade do evangelho não tivesse penetrado na cultura do tempo ao entrar na sua vida da razão, teria permanecido uma seita obscura e provavelmente desapareceria da história; conhecemos o destino do Judeo-Cristianismo. A cultura da razão, por sua vez, atingira uma fase em que era sentida como um impasse por jovens sedentos para os quais o evangelho parecia oferecer a resposta à busca filosófica da verdade. A introdução ao Diálogo de Justino documenta esta situação. Na concepção de Justino, o mártir, (morto cerca de 165 d. C.), o evangelho e a filosofia não se apresentam ao pensador em alternativa, nem são aspectos complementares da verdade que o pensador tem de soldar numa verdade completa- na sua concepção, o Logos do evangelho é o mesmo Deus que o fogos spermatíkos da filosofia, embora numa fase posterior da sua manifestação na história. O Logos opera no mundo desde a criação; todos os homens que viveram segundo a razão, quer gregos (Heráclito, Sócrates, Platão), ou bárbaros (Abraão, Elias), foram num certo sentido Cristãos (Apologia 1, 46). Donde, que a Cristandade não seja uma alternativa à filosofia, mas a própria filosofia no seu estado de perfeição; a história do Logos cumpre-se através da incarnação do Verbo em Cristo. Para Justino a diferença entre evangelho e filosofia é uma questão de fases sucessivas na história da razão.[2][2]

Tendo presente esta apresentação muito antiga do tema, iremos agora examinar um pronunciamento recente. Extraí-o do Novo Catecísmo de 1966, encomendado pela hierarquia dos Países-Baixos e convencionalmente chamado o Catècísmo Holandês. O seu capítulo de abertura tem o título “O Homem Questionador”; e na primeira página encontramos a seguinte passagem:

“Este livro … começa por nos interrogar sobre qual é o significado do facto de que nós existimos. Isto não significa que nós começamos por tomar uma atitude não-Cristã. Significa simplesmente que nós, também, como Cristãos somos homens com mentes questionantes. Devemos estar sempre prontos e capazes de explicar como a nossa fé dá uma resposta à questão da nossa existência.”[3][3]

A passagem, embora pouco polida, é filosoficamente muito relevante. A sua rudeza bem-intencionada esclarece bastante as dificuldades em que as igrejas se encontram hoje. Note-se acima de tudo a dificuldade que a Igreja tem face aos seus próprios crentes que querem ser Cristãos à custa da própria humanidade. Justino começou como uma mente questionante e, depois de ter experimentado as escolas filosóficas da época, deixou que a sua busca se apaziguasse na verdade do evangelho. Hoje, a situação está invertida. Se os crentes estão em descanso num estado de fé que não põe perguntas, o seu metabolismo intelectual tem de ser estimulado pela lembrança que o homem é suposto questionar-se e, que um crente incapaz de explicar como a sua fé é uma resposta ao enigma da existência, pode ser um “bom-Cristão”, mas é um homem questionável. E podemos fortalecer a lembrança recordando, delicadamente, que nem Jesus nem os companheiros a quem Ele transmitiu a palavra sabiam ainda que eram Cristãos; o evangelho oferecia a sua promessa, não a Cristãos, mas aos pobres em espírito, ou seja, a mentes questionantes, embora situados num nível culturalmente menos sofisticado que o de Justino. Por trás da passagem emerge o conflito, não entre o evangelho e a filosofia, mas antes entre o evangelho e a sua posse inquestionável como doutrina. Os autores do catecismo não encaram este conflito com ligeireza; antecipam, mesmo, resistência à sua tentativa de encontrar a humanidade comum dos homens no facto de questionar o significado da existência; e protegem-se contra uma incompreensão precipitada assegurando o leitor que não pretendem “tomar uma atitude não-Cristã”. Assumindo que ponderaram rigorosamente cada afirmação que escreveram, esta cláusula defensiva revela um ambiente onde não é habitual pôr questões, onde o carácter do evangelho como resposta foi tão nocivamente obscurecido pelo seu endurecimento em doutrina estanque que o levantamento da questão, a que o evangelho responde, pode ser suspeito como “atitude não-Cristã”. Se é esta a situação, contudo, os autores têm boas razões para estarem inquietos. Porque o evangelho como doutrina que se pode pegar e ser salvo, ou largar e ser condenado, é letra morta; encontrará indiferença, se não mesmo desprezo, entre mentes questionantes fora da Igreja, bem como na inquietação do crente que será insuficientemente pouco-Cristão por ser um homem que se interroga.

A intenção do Catecismo, restaurar a mente questionante na posição que lhe é ‘ devida, é o primeiro passo importante para restituir ao evangelho a realidade que ele perdeu através do endurecimento doutrinário. Ademais, por muito hesitante e frágil que possa ser a execução, esta tentativa é um primeiro passo para readquirir a vida da razão representada pela filosofia. Tanto o chamado erotismo platónico da busca (zetesís) e a atitude aporética de Aristóteles, intelectualmente mais agressiva, reconhecem no “homem questionante” o homem movido por Deus a pôr as questões que o conduziram à causa do ser (arché). A própria busca é a evidência da inquietação existencial; no acto de questionar, a experiência humana de tensão (tasís) para o fundamento divino irrompe na palavra da interrogação como uma oração pelo Verbo da resposta. Questões e respostas estão intimamente relacionadas; a busca movese no que Platão designou por metaxy, a realidade interina da pobreza e da riqueza, do humano e do divino; a questão é conhecimento, mas este conhecimento é ainda o tremor de uma questão que pode ou não alcançar a verdadeira resposta. Esta busca luminosa em que a procura da resposta verdadeira depende do colocar a verdadeira questão, e o pôr da verdadeira questão depende da apreensão espiritual da verdadeira resposta, é a vida da razão. Ao filósofo certamente que agrada o aviso do Catecismo para que a fé se possa justificar como uma resposta a questões acerca do significado da existência.

Questão e resposta são sustentadas conjuntamente e relacionadas entre si pelo acontecimento da busca. O homem, contudo, embora verdadeiramente questionador, também pode deformar a sua humanidade ao recusar pôr questões ou ao carregá-las com premissas delineados para tornar a busca impossível. O evangelho, para ser ouvido, exige ouvidos que possam ouvir-, a filosofia não será a vida da razão se a razão do questionador estiver depravada (Rom. 1, 28). A resposta não ajudará o homem que perdeu a questão e as dificuldades da época presente são caracterizadas pela perda da questão, mais do que da resposta, como bem viram os autores do Catecismo. Será necessário, portanto, recuperar a questão que o filósofo via respondida no evangelho na cultura helenístico-romana.

Uma vez que a questão se refere à humanidade do homem, permanece idêntica ao que foi no passado; mas hoje está tão distorcida pelo processo Ocidental de desculturação que deve ser, primeiro, desentranhada da linguagem intelectualmente desordenada em que nós falamos indiscriminadamente do significado da vida, ou do significado da existência, ou do facto da existência que não tem significado, ou do significado que deve ser atribuído ao facto da existência, etc…. como se a vida fosse um facto e o significado uma propriedade que pode ou não possuir.

Ora a existência não é um facto. Se alguma coisa é, a existência é o nãofacto de um movimento perturbante da realidade interina, da ignorância e do conhecimento, do tempo e da intemporalidade, da imperfeição e perfeição, da esperança e do cumprimento e, enfim, da vida e da morte. Da experiência deste movimento, da ansiedade de perder a direcção correcta nesta interinidade de escuridão e luz, nasce o inquérito acerca do significado da vida. Mas nasce porque a vida é experimentada como a participação humana num movimento cuja direcção pode ser encontrada ou perdida. Se a existência do homem não fosse um movimento mas um facto, não só não teria qualquer significado mas nem sequer se colocaria a questão do significado. A conexão entre o movimento e investigação torna-se mais compreensível se considerarmos a sua deformação por alguns pensadores existencialistas. Um intelectual como Sartre, por exemplo, encontra-se envolvido no conflito sem saída entre assumir a facticidade sem sentido da existência e a busca desesperada para lhe atribuir um significado a partir dos recursos do seu eu: pode separar-se da investigação do filósofo, ao assumir que a existência é um facto; mas não pode escapar à sua inquietação existencial. Se a busca fôr proibida de se mover na realidade interina, e se, por consequência, não puder ser dirigida ao fundamento divino do ser, deve ser dirigida para um significado imaginado por Sartre. A busca, pois, impõe a sua forma mesmo quando perdeu substância; o facto imaginado da existência não pode permanecer sem significado, mas deve tornar-se a rampa de lançamento para o Ego do intelectual.

Esta destruição imaginativa da razão e da realidade não é uma idiossincrasia de Sartre; tem um carácter representativo na história, porque é, de facto, uma fase num processo de pensamento cuja modalidade foi instaurada por Descartes. As Meditações, é certo, ainda pertencem à cultura da busca, mas Descartes deformou o movimento, ao coisificar os parceiros como objectos de um observador, do género de Arquimedes, situado fora da busca. Sobre a concepção da nova metafísica doutrinária, o homem que se experimenta a si próprio como questionados, aparece como uma res cogitans cujo esse deve ser inferido do seu cogitare,- e o Deus por cuja resposta nós esperamos e aguardamos é convertido no objecto de uma prova ontológica da sua existência. Ademais, o movimento da busca, o erotismo da existência na realidade interina do divino e do humano, tornou-se um cogitare demonstrativo dos seus objectos; a luminosidade da vida da razão foi modificada na claridade do raisonnement. Assim, da realidade da busca desintegrada nas Meditações, emergem os três espectros que pairam no cenário Ocidental até hoje. Primeiro, vem o Deus que foi desligado da busca e ao qual já não se permite que responda às questões: vivendo retirado da vida da razão, foi empurrado para objecto da fé não razoável; de tempos a tempos declara-se que está morto. Existe, em segundo lugar, o cogitare do observador, tipo Arquímedes, exterior ao movimento: foi engolido no monstro da Consciência de Hegel que produz um Deus, homem e história próprias; este monstro ainda está empenhado em luta desesperada, para que o seu movimento dialéctico seja aceite como real, no lugar do movimento real da busca na realidade interina. E, finalmente, existe o homem do cogito ergo sum cartesiano: este tem-se rebaixado consideravelmente no mundo, reduzido como está ao facto e figura do sum ergo cogito sartreano; o homem que em tempos podia demonstrar não só a si próprio mas mesmo a existência de Deus, tornou-se o homem que está condenado a ser livre e que pretende ser preso por editar um jornal maoísta.

As reflexões acerca da busca e da sua deformação no nosso tempo, foram suficientemente longas para permitir algumas conclusões acerca da questão e da sua recuperação. Antes de mais, os males da desculturação afectaram a filosofia, pelo menos tanto como afectaram o evangelho. Uma aculturação através da introdução da filosofia contemporânea na vida da Igreja, a façanha dos patres no ambiente helenístico-romano, seria hoje impossível, porque nem as igrejas têm uso para a razão deformada nem os representantes da deformação põem as questões a que o evangelho ofereceria a resposta. Em segundo lugar, contudo, a situação não é assim tão desesperada como pode parecer, porque a questão está presente mesmo no tempo em que a razão é deformada. A busca impõe a sua forma mesmo quando a sua substância é rejeitada; os filosofemos dominantes do nosso tempo são, claramente, resíduos da busca. A desculturação não constitui uma nova sociedade, ou uma nova idade na história; é um processo no interior da nossa sociedade, notário na consciência pública e suscitando resistência. De facto, nestas linhas, estou precisamente a analisar o fenómeno da razão deformada, reconhecendo-a como tal, segundo os critérios da razão não deformada; e consigo fazê-lo porque a cultura Ocidental da razão ainda está suficientemente viva, apesar das aparências, para fornecer os critérios para caracterizar a sua própria deformação. Esta última observação permitirá, em terceiro lugar, pôr de parte a propagação ideológica dos processos de desculturação como sendo uma “nova era”. Nós não vivemos numa era “pós-Cristã”, “pós-filosófica”, “pós-pagã”, ou na era de “novo-mito” ou do “utopismo”, mas simplesmente num período de desculturação massiça através da desculturação da razão. A deformação não é uma alternativa ou um avanço para além da formação. Pode falar-se de um avanço diferenciador, na luminosidade da busca, do mito para a filosofia, ou do mito para a revelação; mas não se pode falar de um padrão de progresso diferenciador da razão para a desrazão. Em quarto lugar, contudo, a desculturação do Ocidente é um fenómeno histórico persistente durante séculos- os destroços grotescos em que se apresenta, hoje, quebrada a imagem de Deus, não constituem uma opinião errada acerca da natureza do homem mas um resultado do processo secular da destruição. É preciso compreender este aspecto da situação, se não quisermos ser encaminhados para variedades de acção que, embora sugestivas, dificilmente poderiam ser curativas. A questão da busca não pode ser recuperada nos destroços; a sua recuperação não é uma questão de pequenas reparações, de pôr um remendo aqui ou acolá, de criticar este ou aquele autor cuja obra é uma sintoma de desculturação mais do que a sua causa, etc. Nem o conflito será resolvido pelos famosos diálogos em que os parceiros só não trepam para cima dos dedos dos pés uns dos outros, menos por causa de excesso de boas maneiras do que por ignorarem os dedos que devem ser pisados. E, menos ainda se poderá conseguir ao contrapor a doutrina certa à doutrina errada, pois a endoutrinação é precisamente o dano que foi infligido no movimento da busca. Não existiriam doutrinas hoje da existência deformada se a busca na filosofia e no evangelho não tivesse sido escondida pela endoutrinação radical da Idade-Média tardia, tanto na metafísica como na teologia.

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[1][1] The Gospel and Culture é o título da conferência editada em 1971 em Jesus and Marys Hope, Pittsburgh Theological Seminary press, pp. 59-1 01.

[2][2] Na presente tradução, respeita-se o uso do autor em grafar termos significativos quer com maiúsculas quer com minúsculas, conforme o contexto. Ex: evangelho, Evangelho.

[2][3] Trata-se de De Nieuwe Katechísmus. Geloofsver Kondiging voor voiwassenen. Obra redigida pelo Instituto Catequético Superior de Nijmegen, em colaboração com diversos, e por ordem dos Senhores Bispos da Holanda. Cf. trad. Port., Ed. Herder, S. Paulo, 1969, pág. 4.

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*Fonte – The Collected Works of E. Voegelin. Vol. 12 Published Essays, 1966-1985. Louisiana State University Press Baton Rouge/Londres, 1988, pp. 172-212. Tradução Mendo Castro Henriques e Luís Salvador, M.ª Eduarda Barata, Mário Jorge e Nuno Bettencourt

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