domingo, 7 de novembro de 2010

ATO DE PENSAR 4





Evangelho e Cultura – IV
por Eric Voegelin


No drama histórico da revelação, o Deus Desconhecido acabou por se tornar o Deus Conhecido através da sua presença em Cristo. Este drama, embora estivesse vivo na consciência dos autores do Novo Testamento, está muito longe de estar vivo na Cristandade das igrejas contemporâneas porque a história da Cristandade é caracterizada pelo que habitualmente se chama a separação entre teologia escolar e teologia mística, ou experiencial, que formava uma unidade ainda aparentemente inseparável na obra de Orígenes.

O Deus Desconhecido, cujo theotes estava presente na existência de Jesus, foi eclipsado pelo Deus revelado da doutrina Cristã. Mesmo hoje, contudo, quando se reconhece que esta separação infeliz é uma das grandes causas da crise espiritual moderna; quando se fazem tentativas enérgicas para lidar com o problema através de várias teologias existenciais e críticas; e quando não falta informação histórica quer acerca do processo revelatório que conduz à epifania de Cristo, quer acerca da perda da realidade experiencial através da endoutrinação; a análise filosófica destes vários aspectos continua a estar muito aquém da nossa consciência préanalítica.

Torna-se necessário, portanto, reflectir no perigo que deu mau nome ao Deus Desconhecido no Cristianismo e que induziu determinados desenvolvimentos doutrinários como medida protectora contia o perigo de o movimento do evangelho descarrilar para gnosticismo.

No seu livro Agnostos Theos (1913- rpr. 1956, pp. 73ss.) Eduard Norden colocou o problema no seu contexto histórico e refere-se, nessa ocasião, à sua primeira apresentação por Ireneu no Adversus Haereses (ca. 180). Ireneu faz assentar o conflito doutrinal entre gnosticismo e Cristandade ortodoxa na interpretação de uma passagem de Mat. 11, 25-27:

“Nesse tempo, Jesus disse: Reconheço humildemente, Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coisas dos sábios e entendidos e as revelaste aos simples; foi assim Pai, porque assim pareceu bom à tua vista. E estas coisas são-me entregues a mim pelo meu Pai, e ninguém conhece o Filho excepto o Pai, e ninguém conhece o Pai excepto o Filho e aqueles a quem o Filho escolher para o revelar.”[1][31]

Na doutrina de ortodoxia, o Deus revelado por Jesus é o mesmo deus que o deus criador revelado pelos profetas de Israel; na doutrina gnóstica, o Deus Desconhecido de Jesus e o demiurgo israelita são dois deuses diferentes. Contra os Gnósticos, lreneu propõe-se provar, com a sua obra, que o deus que eles distinguem como o Bythos, o Profundo, é na verdade ” a grandeza invisível desconhecida de todos” e, ao mesmo tempo, o criador do mundo descrito pelos profetas (1.19.12). Eles tornam o logíon absurdo quando interpretam as palavras “ninguém conhece o Pai senão o Filho” como referente a um Deus absolutamente Desconhecido (íncognítus deus), porque “como poderia ser desconhecido se eles próprios sabem algo acerca dele?” Estaria o logíon, realmente, a dar o conselho absurdo: “Não procureis a Deus; ele é desconhecido e não o encontrareis”? Cristo não veio para deixar a humanidade saber que o Pai e o Filho são incognoscíveis, senão a sua vinda terra sido supérflua (IV.6).

Nem a apresentação do debate por lreneu, nem o seu argumento em prol da ortodoxia são uma obra prima de análise. Se o Pai e o Filho, no logíon em causa, forem conceptualizados como duas pessoas que se conhecem a si com exclusão dos demais, então a afirmação não seria mais do que uma peça informativa em que podemos ou não acreditar. Nada se extrairia dela, nem para a ortodoxia nem para o gnosticismo. Ademais, se Jesus pode introduzir esta informação conceptualizada sobre si próprio, qualquer um o pode também fazer; e poderíamos esperar que os filhos do Pai se tornassem muito numerosos. De facto, foi algo deste gênero que parece ter acontecido, porque lreneu enumera como Gnósticos “Marcião, Valentino, Basílides, Carpócrates, Simão e os outros”, sugerindo que eles se reclamavam do referido estatuto, e acrescenta: ” mas nenhum deles foi o Filho de Deus, mas apenas Jesus Cristo, nosso Senhor” (IV.6.4). A situação assemelha-se à moderna i’rrupçao de novos Crístos nas pessoas de Fichte, Hegei, Fourier e Comte. Pelo menos, uma causa importante de confusão, é a deformação proposicional e conceptual de símbolos que apenas têm sentido à luz da experiência que os engendrou. Por isso, começarei por situar o logíon no contexto experiencial de Mateus, lembrando, para este propósito, apenas as passagens mais importantes; depois, analisarei a estrutura do problema que pode conduzir aos vários descarrilamentos doutrinários.

Numa época em que a realidade do evangelho ameaça dividir-se entre construções de um Jesus histórico e de um Cristo doutrinar, não é demais enfatizar o estatuto dos evangelhos como simbolismos gerados na metaxy da existência pela resposta de um discípulo ao drama do Filho de Deus. O drama do Deus Desconhecido, que revela o seu Reino através da sua presença num homem, e do homem que revela o que lhe foi entregue, entregando-o aos seus companheiros, é prosseguido pelo discípulo, existencialmente responsável, no drama do evangelho, onde desenvolve o trabalho de transmitir estas coisas, de Deus para o homem. O próprio evangelho é um acontecimento no drama da revelação. O drama histórico na metaxy, portanto, é uma unidade através da presença comum do Deus Desconhecido nos homens que respondem ao seu glapelo” e uns aos outros. Através de Deus e dos homens como dramatís personae, a presença do drama partilha tanto do tempo humano como da intemporalidade divina; mas rasgar o drama da participação na biografia de um Jesus num mundo espácio-temporal e em verdades eternas lançadas do além, é tornar absurda a realidade existencial que foi experimentada e simbolizada como o drama do Filho de Deus.

O episódio do caminho para Cesareia de Filipo (Mat. 16,13-20) pode ser considerado uma chave de compreensão para o contexto existencial em que se deve colocar a passagem 11,27. Aí, Jesus pergunta aos discípulos quem dizem os homens que é o Filho do homem e recebe a resposta que é diversamente entendido como um apocaliptico do tipo de João Baptista, como o profeta Elias, um Jeremias ou outro dos profetas. O questionamento de Jesus move-se para quem os discípulos pensam que ele é, recebendo então a resposta de Simão Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (16,16)[2][32]. Jesus responde: “Abençoado és tu, Simão Bar-Jonas, porque não foram a carne e o sangue que te revelaram isso, mas o meu Pai que está no Céu. [3][33] O Jesus Mateano concorda, portanto, com o Jesus Joanino (Jo. 6,44) em que ninguém poderá reconhecer o movimento da presença divina no Filho, a menos que esteja preparado para esse reconhecimento através da presença do Pai divino nele próprio. A filiação divina não é revelada através de uma informação prestada por Jesus, mas através da resposta de um homem à presença completa em Jesus do mesmo Deus Desconhecido por cuja presença ele é incoativamente movido na sua própria existência. O Deus Desconhecido penetra o drama do reconhecimento de Pedro como a terceira pessoa. Em ordem a traçar a distinção entre revelação e informação, bem como para evitar o descarrilamento de uma para outra, o episódio termina com a ordem de Jesus aos discípulos “não digais a ninguém que eu sou o Cristo” (Mat. 16,20).[4][34]

O motivo do silêncio que guardará a verdade da revelação contra a sua degradação como uma peça de conhecimento disponível para o público em geral, é repetido com particular cuidado por Mateus na história da Paixão. No julgamento perante o Sinédrio, Jesus nada responde às acusações periféricas (26,13); à acusação central de se ter proclamado o Filho de Deus, replica: “Assim o disseste”, não se comprometendo nem negativa nem afirmativamente; mas, depois, falando de Judeu para Judeus, recorda-os do Filho do homem apocalíptico que virá nas nuvens do céu. Já no julgamento perante Pilatos, a ameaça apocalíptica seria insensata; quando os representantes do Sinédrio repetem as suas acusações, Jesus permanece completamente silencioso, “de tal modo que o governador muito se espantou” (27,11-14)[5][35] . Na cena de troça perante o crucificado, a resistência viciosa parece vencer: “Se tu és o Filho de Deus, desce dessa cruz” (27,40)[6][36] . Mas, por fim, quando Jesus se afunda no silêncio da morte enquanto o cosmos se rompe em prodígios, a resposta emerge dos guardas romanos: “Este realmente era o Filho de Deus!” (27,54).[7][37]

‘Na época da Paixão, segundo parece, o grande segredo de Cesareia de Filipo, o chamado Messiasgeheímnis, tornara-se, afinal, um assunto do conhecimento público. Para explicar esta peculiariedade, contudo, não devemos acusar os discípulos de desdém loquaz perante a ordem de silêncio; entre este episódio e a Paixão, Mateus permite que Jesus seja muito generoso em alusões pouco mais que veladas ao seu estatuto como o Messias e o Filho de Deus. A acusação do Sinédrio de que Jesus se proclamara a si mesmo o Filho de Deus estava bem fundada. Ademais, mesmo perante o reconhecimento enfático por Pedro, na ocasião em que Jesus caminha sobre as águas, o evangelista permite que os discípulos como grupo o reconheçam: “Tu realmente és o Filho de Deus!” (14,33).[8][38] Mais atrás no evangelho, o símbolo aparece no logíon 11,25-27 como uma auto-declaração de Jesus seguida por um apelo:

“Vinde a mim todos os que trabalhais e que estais carregados e eu dar- vos-ei repouso. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei comigo porque eu sou suave e humilde de coração e encontrareis repouso para a vossa alma. Pois o meu jugo é brando e o meu fardo é leve…[9][39] (11,28-30)

Toda a perícope de 11,25-30 é aparentemente endereçada, não aos discípulos, mas às multidões mencionadas em 11,7. E, um pouco mais atrás (8,29), os demoníacos de Gadara reconhecem Jesus como o Filho de Deus, conforme o ouvem os circunstantes. Assim, o segredo era conhecido de todos, incluindo aqueles que resistiam, um ponto a reter se quisermos compreender a conversão de Paulo. E contudo, Mateus não está a fazer confusões na construção do seu Evangelho tal como os discípulos não estão a ser loquazes. Um evangelho não é uma obra de arte feita por um poeta, nem uma biografia de Jesus feita por um historiador, mas a simbolizarão de um movimento divino que passa da pessoa de Jesus para a sociedade e a história. O movimento revelatório, por conseguinte, prossegue em mais de um plano. Primeiro, vem o drama pessoal de Jesus desde a constituição da sua consciência como o Filho de Deus nos encontros com Deus (3,16-17) e com o demónio (4, 1-1 1), até à realização completa do que significa ser o Filho de Deus (16,21-23), à submissão à Paixão e à última palavra:” Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?” (27,46)[10][40] . Existe, depois, o drama social dos seus compatriotas que nele reconhecem a autoridade divina, a exousia, através das suas palavras e milagres, distinguindo-se a resposta positiva do povo simples da resistência dos sábios e autoridades públicas. E finalmente, o drama social torna-se histórico ‘, porque sem a preparatio evangélica do movimento milenar que criou a disponibilidade da resposta experiencial e da imaginação mítica para com o Filho de Deus não seria possível o reconhecimento da filiação divina, no tempo de Jesus, nem a compreensão póstuma de que o Deus Desconhecido sofrera a morte num homem para o trazer à vida. O mistério da presença divina na existência cresceu na consciência do movimento, muito antes de começar o drama do Evangelho e os símbolos que o evangelista usa para o exprimir -Filho de Deus, Messias, Filho do homem, Reino de Deus- estavam historicamente disponíveis através dos simbolismos do Farão egípcio, da realeza de David, dos profetas e dos apocalipses, através de tradições iranianas e de mistérios helenísticos. Donde que, o “segredo” do Evangelho não é nem o mistério da presença divina na existência, nem a sua articulação através de novos símbolos, mas o acontecimento da sua compreensão completa e do seu cumprimento através da vida e morte de Jesus. As contradições aparentes dissolvem-se no uso dos mesmos símbolos em vários níveis de compreensão , bem como em vários níveis de cumprimento, até que o Cristo é revelado não numa doutrina plena, mas na plenitude da Paixão e da ressurreição.

O que aqui significa ‘plenitude’, em contraposição com graus menores de compreensão, pode ser esclarecido pelo processo de diferenciação progressiva em capítulos como 11; 16.

No Capítulo 11, João Baptista envia os seus discípulos a inquirir de Jesus se ele é o malak, o mensageiro de Deus, profetizado em Mal. 3,1, que precederá a vinda de Yahweh ao seu templo. Evitando uma resposta directa, Jesus pede aos discípulos que relatem ao seu mestre os milagres e as curas de Jesus, sabendo muito bem que tais factos não são o que se espera do malak de Malaquias; deixa-os livres para extrair as suas próprias conclusões e despede-os com o aviso a João e aos seus seguidores que bem-aventurado é apenas quem não se ofende com Jesus (11,2-6). Depois, vira-se para as “multidões” e explicalhes quem é João-. João é um profeta, mas ao mesmo tempo é mais do que um profeta- de facto, João, mais do que Jesus, é o verdadeiro malak de Malaquias. Na citação de Malaquias, contudo, o Jesus de Mateus muda o texto sobre o mensageiro que ” Eu [o Senhor] envio … para preparar o caminho para Mim”,[11][41] para o mensageiro que o Senhor enviou para preparar o caminho para “vós”. Com esta mudança pronominal de “eu” para “vós”, o Baptista é convertido de precursor do Yahweh de Israel em precursor do Deus Desconhecido que está presente no seu Filho Jesus (11,7-10). Com João termina o profetismo da lei e dos profetas enquanto tipo da existência na realidade interina (11,13); o que está em processo de advento e já presente em Jesus e nas pessoas simples que o seguem, é o Reino do Pai Desconhecido do Sermão da Montanha e do Pai-Nosso. O capítulo, portanto, encerra consistentemente com a auto-declaração do logíon 11,25-30.
No capítulo 16, o Jesus de Mateus resume a diferença entre o seu próprio estatuto e o dos seus antecessores. No já citado 16,13-14, as classificações populares de Jesus como um João Baptista, um Elias, um Jeremias, são postas de parte pela resposta de Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. O significado da resposta deve ser visto através da combinatória dos símbolos: Messias, Cristo e Filho de Deus. Até essa passagem, o símbolo Cristo fôra apenas usado por Mateus no seu papel de narrador, mas não por nenhum dos personagens do drama. Agora o rei-salvador profético e apocalíptico de Israel é identificado ao Filho de Deus no próprio processo de Revelação. Como o malak de Malaquias tinha de modificar a sua compleição para se tornar o precursor de Jesus, assim agora o Messias tem de adquirir as características do Filho de Deus que anteriormente não tinha; ou, pelo menos, essa era a intenção do Jesus de Mateus quando ele aceitou o reconhecimento de Pedro. Historicamente, contudo, os dois símbolos interinfluenciaram-se: a absorção do Messias trouxe para a história do Cristianismo, tal como para a da civilização ocidental cristianizada, o estrato apocaiíptico de fantasia violenta que pode degenerar em acção violenta no mundo. Mesmo no próprio Novo Testamento, em Apo. 19,11-16, vemos a vinda do Messias:

“E agora, eu vi o céu aberto e um cavalo branco aparecer. O seu cavaleiro chama-se Fiel e Verdadeiro; e com justiça ele julga e faz a guerra. Os seus olhos são flamejantes; na sua cabeça estão muitos diademas; ele tem um nome inscrito que ninguém conhece, a não ser ele. Usa um manto empapado em sangue; e é conhecido pelo nome: o verbo de Deus (ho logos tou théou). Por detrás dele, revestidos de linho branco, cavalgam os exércitos celestes em cavalos brancos. Da sua boca sai uma espada aguçada para castigar as nações; irá governá-las com um ceptro de ferro e traz consigo o vinho da ferocidade e da ira de Deus, o Todo Poderoso. No seu manto e na sua coxa está escrito o nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”[12][42]

Este Verbo de Deus, a escorrer sangue, está muito longe do Jesus de Mateus que chama a si os pobres em espírito, os mansos, os puros no coração, os pacíficos, aqueles que têm fome e sede de justiça e que são perseguidos em nome da justiça. Em Mat. 16, Jesus sente que não pretende transformar o Filho de Deus no marechal de campo do Criador de todas as coisas; antes quer transformar o Messias no Filho de Deus. Fossem quais fossem os simbolismos atribuídos ao Ungido em Israel, eles são agora relegados para o passado através da presença do Deus Desconhecido no Filho. A consciência da filiação tem agora de se desdobrar. Donde que, “a partir desse tempo, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que deveria ir a Jerusalém e sofrer muito às mãos dos anciãos, dos escribas e fariseus e ser morto e ao terceiro dia ressuscitar”.[13][43] O pathos da morte representativa a ser sofrida penetrou na consciência de Jesus. Quando Pedro o quis dissuadir desse caminho, Jesus censurou-o, zangado: “Afasta-te, Satanás! Tu és um estorvo (skándalon) para mim; porque o que tu pensas não é próprio de Deus mas dos homens” (16,21-23).[14][44] Não é por acaso que Jesus censura Pedro com o mesmo hypage satana que usará na rejeição do tentador em 4, 10; a fórmula pretende, de facto, caracterizar o modo de pensar do “homem” como o modo de ser diabólico. Mas este “homem” que pode ser simbolizado como o diabo é o homem que contraiu a sua existência à de um eu imanente ao mundo e que se recusa a viver na abertura da metaxy. O Jesus de Mateus deixa que a censura a Pedro, ministrada na linguagem mais antiga de Deus e Satanás, seja seguida pela tradução do seu significado na simbolizarão noética da existência, já aqui discutida, através do duplo significado da vida e da morte-.

“Se um homem quiser vir comigo, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque quem quer salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por mim, salva-la-á. Porque o que aproveita ao homem se ele ganhar todo o mundo mas perder a sua alma. [15][45] (16,24-26)

A afirmação conclui com a questão pungente: o que tem um “homem”, ou seja, a sua vida como um eu contraído imanente, a oferecer em troca da sua “vida” (psyché) no segundo sentido?[16][46] O significado da censura, bem como a relação entre ambos os estratos simbólicos, é ademais iluminado pelo uso do verbo aparneístaí (renegar, repudiar, desaprovar) na negação do eu de 16,24. O mesmo verbo é usado para identificar a negação humana de Jesus na afirmação: “A quem me renegar a mim perante os homens, também o renegarei perante o meu Pai que está nos céus” (10,33)[17][47] . Ademais, é especificamente utilizado a propósito da negação de Pedro em 26,33-34.69-75, criando assim o grande contraponto entre as três negações de Jesus por Pedro e as três rejeições do diabo por Jesus. Na interinidade da existência, o homem enfrenta a escolha entre negar o seu eu e o diabo ou, então, Jesus e o Deus Desconhecido.

Embora longe de exaustiva, a análise do contexto experiencial em que se situa a passagem 11,27, foi levada suficientemente longe para evidenciar os problemas noéticos da realidade que se prestam a más interpretações, devido a hipóstases doutrinais, ênfase excessiva numa área da realidade em detrimento de outras, ou mera falta de interesse em aprofundar a penetração noética. No contexto presente, limito-me a uma breve enumeração das questões principais:

1. Os diversos problemas que nos foram transmitidos ao longo de dois mil anos, têm o seu centro num Movimento em que a consciência humana de existência emerge da experiência primária do cosmos. A consciência torna-se luminosa para si mesma como o local do processo revelatório, do buscar e do ser atraído. A experiência de um cosmos cheio de deuses, tem de ceder à experiência da presença divina eminente no movimento da alma na metaxy. Por conseguinte, toda a simbolizarão da verdade sobre a realidade, sobre Deus, homem, sociedade e mundo tem de, a partir de agora, ser filtrada e compatibilizada com a verdade eminente da consciência existencial. Ademais, uma vez que o lugar da verdade é historicamente preenchido pelas simbolizações mais compactas da experiência primária, a consciência existencial é a consciência histórica no sentido em que, por ocasião da sua diferenciação, a verdade da realidade é descoberta como um acontecimento no processo de uma realidade cuja verdade avança para as fases superiores de realização. Para a história ser compatível com a verdade da existência, tem de ser simbolizada como um processo revelatório: o passado cosmológico de experiência e simbolizarão deve ser relacionado de modo inteligível com a consciência diferenciada a que deu origem; e a visão do futuro deve ter alguma relação inteligível com a intuição acerca do duplo significado da vida e da morte. As respostas a este problema têm um amplo leque de variações. Pode avaliar-se a sua amplitude ao confrontarmos a concepção agustiniana da história e a sua espera paciente de eventos escatológicos com a especulação hegeliana que realiza o evento escatológico através da construção do sistema,- ou se confrontarmos a posição de um teólogo existencialista contemporâneo que rejeita o Antigo Testamento como irrelevante para a teologia cristã, com a posição de Clemente de Alexandria que insiste em adicionar a filosofia grega como o segundo Antigo Testamento para cristãos. No que se refere a visões do futuro, podemos confrontar o milénio introduzido por um anjo do Senhor em Apocalipse 20, com os milénios introduzidos por Cromwell e o exército puritano, ou por Lenine e o partido comunista.

2. O cosmos não deixa de ser real quando a consciência da existência na realidade interina se diferencia; mas há enormes resistências emocionais e dificuldades técnicas em re-simbolizar, à luz da nova intuição, a ordem do cosmos que, ao nível compacto, fôra adequadamente simbolizada pelos deuses intracósmicos; sucede isto porque a nova consciência histórica exige que os antigos deuses sejam re-simbolizados como símbolos de fases anteriores no processo de revelação. No movimento da filosofia clássica, como já mostrei, a análise noética da metaxy foi tão longe quanto no movimento do evangelho e, nalguns pontos, é superior a tudo o que pudermos encontrar no evangelho; contudo jamais deu o passo decisivo de converter a experiência da tensão humana para o Deus Desconhecido na verdade a que se deve conformar toda a verdade do real. Para Platão, o monogenes do Deus Desconhecido não é um homem mas o cosmos. No mito do Fedro por conseguinte, Platão trata explicitamente da relação entre o Deus Desconhecido e os deuses intra-cósmicos: por ocasião dos festivais, os Olímpicos ascendem ao topo do seu céu; “onde o trabalho e a luta supremos (éschatos) aguardam a alma” que pretende passar para além e alcançar a superfície exterior da cúpula; mas quando eles tomam esta atitude podem contemplar as coisas exteriores ao céu. Os seguidores humanos dos deuses têm êxito parcial, mas nunca completo, em alcançar este estado de contemplação, de tal modo que nenhum poeta deste mundo jamais louvou, ou louvará, condignamente o hyperouránion, a região para além do céu (247). ‘Assim, a imaginação mítica de Platão atribui aos deuses intra-cósmicos uma tensão na psyché para com o Deus Desconhecido e deixa que eles transmitam o seu verdadeiro conhecimento ao homem. Na linguagem do mito cosmológico, estes mediadores e buscadores Olímpicos de Deus são o equivalente ao Filho de Deus, o único que conhece o Pai Divino no pleróma da presença e que transmite o seu conhecimento aos seguidores, de acordo com a respectiva receptividade humana. Esta resolução platónica do problema teve um êxito duradouro na filosofia: seiscentos anos depois, quando Plotino diferenciou de novo o Deus Desconhecido como a Mónada epekeina nou (Enéades V.111.2), voltou ao mito do Fedro para simbolizar a relação entre os deuses intracósmicos e o Deus Desconhecido (Enéades V.VIII.10). Ademais, utilizou o argumento dos deuses que contemplam o “rei do reino do além” na sua polémica contra os “filhos de deus” gnósticos que se pretendem elevar acima dos deuses do cosmos e falar deste mundo como ” a terra alheia” (11.ix.9).

3. A área de consciência existencial, embora de grau eminente, é apenas uma área da realidade. Se se lhe der ênfase excessiva, o cosmos e os seus deuses tornar-se-ão a “terra alheia” dos gnósticos e dificilmente valerá a pena viver a vida do mundo desprezado . A tendência para este desequilíbrio já está presente no movimento evangélico. Mas quando Jesus prefere os simples aos sábios e às autoridades públicas, não pretende iniciar uma revolução que levará os simples ao poder; apenas considera que o Reino de Deus é mais facilmente acessível aos “pobres” do que a homens com interesses consolidados e posições de responsabilidade nos assuntos mundanos. O apelo de Jesus é muito diferente do apelo que Platão dirigia aos filhos da classe dominante, pedindo-lhes que se tornassem existencialmente capazes de serem governantes da cidade dramática, que deveria substituir a cidade corrupta do seu tempo. O Reino de Deus, contudo, não tem organização social nem classe dominante neste mundo. Em Mateus 16, Jesus conclui a sua análise da existência com a certeza: “Em verdade, em verdade vos digo: muitos dos que aqui estão não provarão a morte antes de terem visto o Filho do Homem voltar no seu Reino,”[18][48] (16,28) -uma visão que provavelmente não entusiasma nem os membros da situação nem os revolucionários que se querem estabelecer no seu lugar. Ademais, não é só o futuro da história que se pode perder se não “pensarmos no amanhã” (Mat. 6,34); existe também o risco de perder o seu passado. É certo que o Jesus Mateano não veio para destruir a lei ou os profetas mas para os cumprir (5,17); mas é difícil distinguir entre o cumprimento e a destruição apocaiíptica. Notámos as subtis conversões do malak de Yahweh no precursor de Jesus, bem como do Messias no Filho de Deus; e o Pai Desconhecido de 11,27, a que ninguém conhece excepto o Filho, dificilmente é o Deus bem conhecido que trovejou no Sinai e falou através de Moisés e dos profetas. Será que o Yahweh de Israel também deveria tornar-se um buscador de deus e um mediador tal como os Olímpicos do mito Platónico?

4. Uma vez que estes temas não estavam suficientemente clarificados no movimento do evangelho, tornou-se possível o descarrilamento para o gnosticismo. A força do evangelho reside na sua concentração no ponto que é o mais importante de todos: a verdade da realidade não tem o seu centro no cosmos em geral, nem na natureza ou na sociedade ou no governo imperial, mas na presença do Deus Desconhecido na existência humana, na sua vida e morte. Contudo, esta própria força pode causar uma ruptura se a ênfase no centro da verdade se tornar tão intensa que as suas relações com a realidade de que é centro, sejam negligenciadas ou interrompidas. A menos que o Deus Desconhecido seja a presença divina indiferenciada no horizonte dos deuses específicos intracósmicos, ele é de facto um deus desconhecido pela experiência primária do cosmos. Nesse caso, contudo, não existe processo de revelação na história, nem um movimento milenar que culmina na epifania do Filho de Deus, mas apenas a irrupção de um deus extracósmico num cosmos onde até então permanecera escondido da humanidade. Ademais, uma vez que a revelação deste deus extracósmico é a única verdade que existencialmente importa, o cosmos, os seus deuses e a sua história tornam-se uma realidade afectada pelo índice de inverdade existencial. Em particular, o Yahweh de Israel é imaginado como um demónio mau que criou o cosmos em ordem a satisfazer o seu desejo de poder e a manter o homem, cujo destino é extracósmico, como prisioneiro no mundo da sua criação. Este deus dos gnósticos, decerto que não é o Deus do evangelho que sofre a morte no homem para elevar o homem à vida; mas é um deus que pode emergir do movimento, através de um acto da imaginação, quando a consciência da existência se isola da realidade do cosmos em que se diferenciou. Afirmo intencionalmente que o deus gnóstico pode emergir do movimento em geral, porquanto não está necessariamente acorrentado ao movimento do evangelho como um dos seus descarrilamentos possíveis. Os historiadores da religião que encontram as “origens” do gnosticismo na Hélade ou na Pérsia, na Babilónia ou no Egipto, em religiões de mistérios helenísticos ou movimentos sectários judaicos, e que diagnosticam os elementos gnósticos no próprio Novo Testamento, não estão completamente errados, porque a possibilidade estrutural do descarrilamento está presente, desde que se iniciou o movimento existencial para diferenciar o Deus Desconhecido dos deuses intracósmicos. Contudo, devemos esclarecer que a presença da possibilidade estrutural não é, em si própria, gnosticismo; seria preferível aplicar o termo apenas aos casos em que o isolamento imaginativo da consciência existencial se torna o centro motivador para a construção de simbolismos grandiosos, como sucedeu nos grandes sistemas gnósticos do século 11 d.c. Estes sistemas, embora produtos da imaginação mítica, não são mitos do tipo intracósmico nem são mitos dos filósofos como os de Platão ou de Plotino, nem pertencem ao gênero dos evangelhos do Novo Testamento. Constituem um simbolismo sui generis que exprime um estado de alienação da realidade, mais precisamente caracterizável como um isolamento extracósmico da consciência existencial.

Embora a possibilidade do descarrilamento gnóstico seja inerente ao movimento desde o seu princípio, por a completa diferenciação da verdade da existência na presença,do Deus Desconhecido através do seu Filho, que criou o campo cultural em que a contracção extracósmica da existência se torna uma possibilidade igualmente radical. Juntamente com o evangelho enquanto verdade da realidade, a civilização ocidental herdou a contracção extracósmica como possibilidade do seu desordenamento. Já apontei o padrão cultural dos novos Cristos no final do séc. XVIII e no princípio do séc. XIX que repetem o padrão dos “filhos de deus” que suscitaram a ira de lreneu e de Plotino. Mas de momento não posso ir além deste breve apontamento. Não sabemos que horrores ainda nos estão reservados na fase presente da desordem cultural; mas espero ter mostrado que a filosofia pode ajudar-nos na penetração noética dos seus problemas. Talvez a sua persuasão possa ajudar a restaurar a lei da razão.

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[1][31] “Por esse tempo, pôs-se Jesus a dizer: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”

[1][32] “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.”

[3][33] “Jesus respondeu-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne e o sangue que te revelaram isso e sim o meu Pai que está nos céus.”

[4][34] “Em seguida proibiu severamente os discípulos de falarem a alguém que ele era o Cristo.”

[5][35] …de tal sorte que o governador ficou muito impressionado.”

[6][36] “…se és o Filho de Deus desce da cruz.”

[7][37] ..De fato, este era filho de Deus!”

[7][38] “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!”

[9][39] “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”

[10][40] “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”

[11][41] “Eis que vou enviar o meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim.”

[12][42] “Vi então o céu aberto: eis que apareceu um cavalo branco, cujo montador se chama “Fiei” e “Verdadeiro”; ele julga e combate com justiça. Seus olhos são chama de fogo; sobre sua cabeça há muitos diademas, e traz escrito um nome que ninguém conhece, excepto ele; veste um manto embebido de sangue, e o nome com que é chamado é Verbo de Deus. Os exércitos do céu acompanham-no em cavalos brancos, vestidos com linho de brancura resplandecente. Da sua boca sai uma espada afiada para com ela ferir as nações. Ele é quem as apascentará com um cetro de ferro. Ele é quem pisa o lagar do vinho do furor da ira de Deus, o Todo-poderoso. Um nome está escrito sobre seu manto e sobre sua coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores.”

[12][43] “A partir dessa época, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que era necessário que fosse a Jerusalém e sofresse muito por parte dos anciãos, dos chefes dos sacerdotes e dos escribas, e que fosse morto e ressurgisse ao terceiro dia.”

[14][44] “Afasta-te de mim, Satanás! Tu me serves de pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus mas dos homens!”

[15][45] “Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la.”

[16][46] “Ou o que poderá o homem dar em troca de sua vida?”

[17][47] “Aquele, porém, que me renegar diante dos homens, também o renegarei diante de meu Pai que está nos Céus.”

[18][48] “Em verdade vos digo que alguns dos que aqui estão não provarão a morte até que vejam o Filho do Homem vindo em seu reino.”

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