quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O REINO

As tentações de Jesus – parte 5
por francisco razzo
por Bento XVI*

Vejamos a terceira e última tentação, o ponto mais elevado de toda a história. O diabo leva o Senhor a um alto monte para que veja tudo que há em volta. Mostra-lhe todos os reinos da terra e o seu resplendor e oferece-lhe o domínio do mundo. Não consiste nisso de fato a missão do Messias? Não deve ele ser o rei do mundo, reunir toda a terra num grande reino de paz e de bem-estar? Tal como, para a tentação do pão, há, na história de Jesus, duas situações opostas — a multiplicação dos pães e a Última Ceia —, o mesmo se dá aqui.
O Senhor ressuscitado reúne os seus “no cimo de um monte” (Mt 28, 16). E então diz realmente: “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mt 28, 18). Há aqui duas coisas que são novas e diferentes: o Senhor tem poder no céu e na terra. E só quem tem este poder todo é que tem o poder autêntico e redentor. Sem o céu, o poder terreno permanece sempre ambíguo e frágil. Somente o poder que se coloca sob a medida e o juízo do céu — isto é, de Deus — pode tornar-se poder para o bem. E só o poder que se coloca sob a bênção de Deus pode ser seguro.
Mas agora ocorre algo completamente diferente: Jesus tem este poder como ressuscitado. Isto é: este poder pressupõe a cruz, pressupõe a sua morte. Pressupõe o outro monte — Gólgota —, onde Ele está suspenso na cruz e morre escarnecido pelos homens e abandonado pelos seus. O reino de Cristo é algo completamente diferente dos reinos da terra e do seu esplendor que Satanás apresenta. Este esplendor, como a palavra grega doxa diz, é aparência que se dissolve.
Tal esplendor, Cristo não tem. O seu cresce através da humildade da pregação naqueles que se deixam fazer seus discípulos, que são batizados no nome da Santíssima Trindade e que guardam os seus mandamentos (Mt 28,19s).
Mas voltemos à tentação. O seu verdadeiro conteúdo torna-se visível se considerarmos as novas formas que assume constantemente ao longo da história. O império cristão tentou fazer da fé um fator político da unidade do Império. O reino de Cristo deve então receber a forma e o esplendor de um reino político. A impotência da fé, a impotência terrena de Jesus Cristo deve ser ajudada pelo poder político e militar. Em todos os séculos ressurgiu sempre, e em múltiplas formas, esta tentação de assegurar a fé através do poder, e ela correu sempre o risco de ser asfixiada nos abraços com o poder. A luta pela liberdade da Igreja e, portanto, a luta porque o reino de Jesus não pode ser identificado com nenhuma figura política, deve ser travada durante todos os séculos. Então, o preço pela mistura da fé e do poder político consiste, em última análise, no fato de que a fé entra a serviço do poder e deve vergar-se aos seus critérios.
Na história da Paixão do Senhor, esta alternativa de que aqui se trata aparece numa forma verdadeiramente provocante. No auge do processo, Pilatos apresenta ao povo Jesus e Barrabás para que seja escolhido um deles, pois um deles deve ser libertado. Mas quem era Barrabás? Temos conhecimento apenas do que se apresenta no Evangelho de S. João: “Barrabás era um salteador” (Jo 18, 40). Só que o termo grego salteador havia recebido um significado específico na situação política de então na Palestina. Ele significava o mesmo que “lutador da resistência”.
Barrabás havia participado de uma rebelião (cf. Mc 15,7) e além disso era acusado — neste contexto — de homicídio (Lc 23, 19.25). Quando S. Mateus diz que Barrabás tinha sido um “preso célebre”, isso significa que tinha sido um dos destacados lutadores da resistência, talvez até o próprio cabeça dessa rebelião (Mt 27,16). Em outras palavras: Barrabás era uma figura messiânica. A escolha entre Jesus e Barrabás não é casual: estão em confronto duas figuras messiânicas, duas formas de messianismo. Isto se torna ainda mais claro quando pensamos que Bar-Abbas quer dizer “filho do Pai”. Trata-se de uma típica designação messiânica, de um nome cultuai de um destacado cabeça de um movimento messiânico. A última grande guerra messiânica dos judeus fora conduzida no ano 132 por Bar-Kochba, “filho da estrela”. É a mesma configuração do nome, a mesma intenção é representada.
Por Orígenes tomamos conhecimento de um outro pormenor muito interessante: em muitos manuscritos dos Evangelhos até o séc. III, o homem aqui em referência chamava-se Jesus Barabbas, “Jesus filho do Pai”. Ele se apresenta como uma espécie de sósia de Jesus; concebiam a mesma pretensão, mas de um modo totalmente diferente. A escolha consiste, portanto, entre um Messias que encabeça um combate que promete liberdade e o próprio reino e este misterioso Jesus que anuncia o perder-se como caminho para a vida. É então surpreendente que as massas tenham dado a prioridade a Barrabás? (Veja mais detalhes em Messori no seu importante livro, P a t ì Sotto Ponzio Pilato [Torino 1992] 52-62). Se hoje tivéssemos de escolher, teria Jesus de Nazaré, o filho de Maria, o filho do Pai, alguma possibilidade? Será que conhecemos mesmo Jesus? Será que O compreendemos? Não deveríamos hoje, tanto quanto ontem esforçar-nos para de novo O conhecer?
O tentador não é tão rude a ponto de nos propor diretamente a adoração do diabo. Ele apenas nos propõe que nos decidamos por aquilo que é racional, pela primazia de um mundo planejado e organizado, no qual Deus pode ter o seu lugar como uma questão privada, mas que não pode imiscuir-se nas nossas intenções essenciais. Solowjew dedica ao Anticristo o livro O caminho aberto para a paz e o bem-estar do mundo, que de certo modo se torna a nova Bíblia e que tem como próprio conteúdo a adoração da prosperidade e do planejamento racional.

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