sábado, 20 de novembro de 2010

UNGIDO

As tentações de Jesus – parte 1
por francisco razzo
por Bento XVI*

A descida do Espírito Santo sobre Jesus, que encerra a cena do batismo, institui formalmente o seu ministério. Por isso os Padres viram neste processo, com razão, uma analogia com a unção, com a qual os reis e os sacerdotes eram instituídos no seu ministério cm Israel. A palavra Messias-Cristo significa “o ungido”: a unção era considerada, na Antiga Aliança, o sinal visível da dotação com os talentos do ministério, com o Espírito de Deus para o ministério.
Em Is 11,2 desenvolve-se conseqüentemente a esperança a respeito de um verdadeiro “Ungido”, cuja “Unção” consiste precisamente em sobre ele descer o Espírito do Senhor, “o Espírito da sabedoria e da inteligência, o Espírito do conselho e da força, o Espírito do conhecimento e do temor de Deus”. Segundo o relato de S. Lucas, Jesus apresentou-se a si mesmo e à sua missão na Sinagoga de Nazaré com uma citação análoga de Isaías: “O Espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor me ungiu” (Lc 4,18; Is 61,1). A conclusão da cena do batismo nos diz que Jesus recebeu esta verdadeira “Unção” que Ele é o Ungido esperado — que a Ele naquela hora foi conferida formalmente, para a história e perante Israel, a dignidade real e a dignidade sacerdotal.
A partir de então, Ele está subordinado a esta missão. Os três Evangelhos sinópticos contam-nos, para nossa surpresa, que a primeira ordem do Espírito é levá-lo para o deserto “para aí ser tentado pelo demônio” (Mt 4,1). O recolhimento interior precede à ação, e este recolhimento também é necessariamente uma luta pela sua missão, uma luta contra as deturpações da missão que se oferecem como suas reais realizações. A missão consiste em descer aos perigos do homem, porque só assim pode o homem caído ser levantado: Jesus deve (isso pertence ao cerne da sua missão) penetrar no drama da existência humana, atravessá-lo até seu último fundo, para encontrar a “ovelha perdida”, colocá-la nos seus ombros e levá-la para casa.
A descida de Jesus “ao inferno”, de que fala a profissão de fé, não se realizou apenas na sua morte e depois da sua morte, mas pertence ininterruptamente ao seu caminho: Ele deve agarrar toda a história desde o seu início (desde “Adão”) atravessá-la e sofrê-la completamente para que assim a possa transformar. Especialmente a Epístola aos Hebreus enfatizou que pertence à missão de Jesus, à sua solidariedade conosco antecipadamente representada no batismo, não se negar às ameaças e aos riscos da condição humana: “Por isso teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, a fim de ser um Sumo Sacerdote misericordioso e fiel no serviço de Deus para expiar os pecados do povo. E porque Ele mesmo sofreu e foi tentado é que pode socorrer os que são tentados” (Hb 2, 17s). “Porque não temos um Sumo Sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas. Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, exceto no pecado.” (Hb 4, 15) A história das tentações mantém assim uma estreita relação com a história do batismo, na qual Jesus se solidariza com os pecadores. Próximo dela está a agonia no jardim das Oliveiras como a outra grande luta de Jesus motivada pela sua missão. Mas as “tentações” acompanham todo o caminho de Jesus, e assim a história das tentações aparece — de um modo semelhante ao batismo — como uma antecipação na qual se condensa a luta de todo o caminho. No seu curto relato da tentação (cf. 1,13), S. Marcos pôs em evidência os paralelos com Adão, o intenso sofrimento do drama humano enquanto tal: Jesus “vivia entre as feras e os anjos o serviam”. O deserto — o oposto do Jardim — torna-se o lugar da reconciliação e da salvação; os animais selvagens, que representam a forma concreta da ameaça do homem através da rebelião da criação e do poder da morte, tornam-se amigos como no paraíso. É assim restaurada aquela paz que Isaías anuncia para os tempos do Messias: “Então o lobo habita com o cordeiro, a pantera com o cabrito…” (Is 1 1 , 6 ) . Onde o pecado é vencido, onde a harmonia do homem com Deus é restaurada, segue-se a reconciliação da natureza, a criação dilacerada transforma-se em lugar de paz, como S. Paulo diz, quando fala do suspiro da criação, que “espera ansiosamente pela manifestação dos filhos de Deus” (Rm 8 , 1 9 ) .
Não são os oásis da criação, que surgiram por exemplo em torno das abadias beneditinas do Ocidente, antecipações desta reconciliação da criação, que vem dos filhos de Deus, assim como inversamente casos como Chernobyl são a perturbadora expressão da criação escravizada na ausência de Deus? S. Marcos encerra a sua breve história da tentação com uma palavra, que é possível conceber como alusão ao salmo 91,11ss:”… E os anjos serviam-no”. A palavra encontra-se também como conclusão da história pormenorizada da tentação em S. Mateus e só a partir deste contexto mais vasto é que se torna inteiramente compreensível.

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