domingo, 21 de novembro de 2010

JEJUAR

As tentações de Jesus – parte 2
por francisco razzo
por Bento XVI*

S. Mateus e S. Lucas narram três tentações de Jesus, nas quais se espelha a luta por causa da sua missão, bem como se introduz, ao mesmo tempo, a questão sobre o sentido da vida humana enquanto tal. O núcleo de toda a tentação — isso se torna visível aqui — é colocar Deus de lado, o qual, junto às questões urgentes da nossa vida, aparece como algo secundário, se não mesmo de supérfluo e incômodo. Ordenar; construir o mundo de um modo autônomo, sem Deus; reconhecer como realidade apenas as realidades políticas e materiais e deixar de lado Deus, tendo-o como uma ilusão: aqui está a tentação que de muitas formas hoje nos ameaça.
Pertence à essência da tentação o seu aspecto moral: ela não nos convida diretamente para o mal, isso seria grosseiro. Ela pretende mostrar o que é melhor para nós: pôr finalmente de lado as ilusões e dedicar-se de todas as formas à melhoria do mundo. Além disso, ela se apresenta com a pretensão do verdadeiro realismo: o real é o que aparece (poder e pão); as coisas de Deus, ao contrário, aparecem como um mundo irreal, secundário, do qual não se tem nenhuma necessidade.
Trata-se portanto de Deus. É Ele o real, a realidade mesma, ou não é nada? É o bem, ou devemos nós mesmos inventá-lo? A questão acerca de Deus é a questão fundamental que se levanta na encruzilhada da existência humana. O que é que o redentor do mundo deve ou não fazer: é disto que se trata nas tentações de Jesus. As três tentações são idênticas em S. Mateus e em S. Lucas, somente a seqüência é que é diferente. Optamos por seguir a ordem que S. Mateus oferece tendo em vista a conseqüência do crescendo na qual está construída. “Depois de ter jejuado 40 dias e 40 noites, Jesus teve fome.” (Mt 4, 2) O número 40 no tempo de Jesus possuía para Israel um conteúdo simbólico muito rico: recorda-nos em primeiro lugar os 40 anos de Israel no deserto, que foi o período da sua tentação bem como o tempo de uma especial proximidade de Deus. Fazem-nos pensar também nos 40 dias que Moisés passou no monte Sinai, antes de poder receber a palavra de Deus, as tábuas sagradas da Lei. Podem também recordarnos a explicação rabínica, segundo a qual Abraão, no caminho para o monte Horeb, onde devia sacrificar o seu filho, durante 40 dias e 40 noites não comeu nem bebeu, tendo se alimentado apenas com a visão e com as palavras do anjo que o acompanhava.
Já numa certa expansão da simbologia dos números, os Padres consideraram o 40 um número cósmico, um sinal por excelência deste mundo: os quatro fins do mundo circunscrevem o todo, e dez é o número dos mandamentos. O número cósmico multiplicado pelo número dos mandamentos torna-se pura e simplesmente a expressão simbólica da história deste mundo. Jesus faz, por assim dizer, mais uma vez a peregrinação do êxodo de Israel e toma conhecimento dos enganos e dos falsos caminhos da história; os 40 dias de fome abrangem o drama da história, que Jesus em si mesmo acolhe e transporta.
“Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se transformem em pão” (Mt 4, 3) — assim diz a primeira tentação. As palavras “Se és o Filho de Deus…” serão ditas novamente, pouco depois, pelos escarnecedores junto da cruz: “Se és o Filho de Deus, então desce da cruz…” (Mt 27, 40). O livro da Sabedoria já havia previsto esta situação: “Se o justo é realmente o filho de Deus, então Deus o amparará…” (Sab 2, 18). Escárnio e tentação andam aqui perfeitamente juntos: para se tornar digno de fé, Jesus deve apresentar a prova para a sua pretensão.
Esta exigência de prova percorre toda a história da vida de Jesus, visto que constantemente o acusam de não ter provado suficientemente pois não realizou o grande milagre que retirasse toda a ambigüidade e toda a contradição e que a todos clara e indiscutivelmente mostrasse quem ele era ou não.
E esta exigência a respeito de Deus, de Cristo e da Igreja tem sido constantemente mantida ao longo de toda a história: Se tu existes, ó Deus, então tu mesmo te deves mostrar. Então deves retirar as nuvens do teu escondimento e dar-nos a clareza que pretendemos. Se Tu, Cristo, és realmente o Filho e não um dos iluminados, como sempre apareceram na história, então Tu deves mostrar isso de um modo muito mais claro do que o fazes. E então Tu deves dar à Tua Igreja, se ela verdadeiramente deve ser a Tua, uma outra medida de clareza, diferente daquela que na realidade tem.
Este ponto é retomado na segunda tentação e forma o seu autêntico centro. A prova da existência de Deus que o tentador propõe na primeira tentação consiste em transformar em pão as pedras do deserto. Trata-se, em primeiro lugar, da fome de Jesus no sentido literal como viu S. Lucas: “Diz a esta pedra que se transforme em pão” (Lc 4, 3). Mas S. Mateus compreende a tentação de um modo mais abrangente, como já durante a vida do Jesus terreno e como durante toda a história Lhe fora e Lhe será apresentada. O que há de mais trágico, o que mais contradiz a fé num Deus bom e a fé num redentor do homem do que a fome na humanidade?

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