sábado, 6 de novembro de 2010

ATO DE PENSAR 3





Evangelho e Cultura – III
por Eric Voegelin


O Deus que brinca com o homem como um fantoche não é o Deus que se torna homem para salvar a vida, sofrendo a morte.

O que gerou a narrativa salvífica da incarnação, morte e ressurreição divinas em resposta à questão da vida e da morte, é consideravelmente mais complexo do que a filosofia clássica; é mais rico devido ao fervor missionário do seu universalismo espiritual; é mais pobre pela sua negligência do controle noético; é mais amplo pelo seu apelo à humanidade inarticulada no homem comum, mais restrito devido à tendência contra a sabedoria articulada dos sábios; mais imponente através do seu tom imperial de autoridade divina; mais desequilibrado devido à sua ferocidade apocalíptica que conduz ao conflito com as condições da existência humana em sociedade; mais compacto devido à sua generosa absorção de extractos anteriores de imaginação mítica, especialmente devido à recepção da historiogénese Israelita e à exuberância dos milagres operados; mais diferenciado através da experiência intensamente articulada da acção amoroso-divina na iluminação da existência pela verdade.

A compreensão destas diferenças complexas entre o movimento evangélico e o movimento da filosofia clássica, contudo, não fica mais esclarecido por se usarem dicotomias tópicas tais como filosofia e religião, metafísica e teologia, razão e revelação, razão natural e sobrenatural, nacionalismo e irracionalismo, etc. Procederei do seguinte modo: primeiro, estabelecerei o cerne noético partilhado pelos dois movimentos e depois explorarei alguns problemas que resultam da diferenciação da acção divina no movimento evangélico, bem como da recepção dos estratos mais compactos de experiência e simbolizarão.

A análise começará pelo ponto em que o evangelho concorda com a filosofia clássica ao simbolizar a existência como um campo de atracções e contra-atracções. Já antes citei Jo 12:32 onde o autor faz Cristo dizer que, quando se elevar da terra atrairá a si (helkein) todos os homens. Em Jo 6:44, este poder atractivo do Cristo é identificado com o puxão exercido por Deus: “Ninguém pode vir a mim a menos que o Pai, que me enviou, o puxe (helkeín).”[1][9] Mais austero neste ponto do que os evangelistas sinópticos, João torna perfeitamente claro que não existe outra “mensagem” de Cristo senão o acontecimento do Logos divino que se torna presente no mundo através da vida e morte representativa de um homem. As palavras finais da grande oração antes da Paixão exprimem a substância deste evento:

“Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te, e eles sabem que tu me enviaste. A eles dei a conhecer o teu nome eles torná-lo-ão conhecido, a fim de que o amor pelo qual tu me amaste esteja neles e eu neles.”[2][10] 17:25-26)

Seguir Cristo significa prosseguir o evento da presença divina na sociedade e na história: “Tal como tu me enviaste ao mundo, assim eu os envio ao mundo”[3][11] (17:18). E finalmente, uma vez que não há outra doutrina a ensinar senão a história a narrar da atracção divina que se torna efectiva no mundo através de Cristo, a narrativa salvífica que responde à questão da vida e da morte pode ser reduzida a uma afirmação breve:

“E é isto a vida eterna: Conhecer-te, o único verdadeiro Deus, e Jesus Cristo que tu enviaste.”[4][12] 17:3)

Com uma extraordinária economia de meios, João simboliza a atracção do cordão de ouro, a sua ocorrência como um acontecimento histórico no homem representativo, a iluminação da existência através do movimento da questão da vida e da morte iniciada pela atracção à resposta salvífica, a criação de um campo social através da transmissão da intuição aos seguidores e, enfim, os deveres que incumbem a João de promulgar o acontecimento à humanidade em geral, através da escrita do evangelho como um documento literário: “Ora Jesus fez muitos outros sinais na presença dos discípulos que não estão registados neste livro. Os registados, contudo, foram escritos para que tu possas crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que ao acreditá-lo possas viver em seu nome’,[5][13] (20:30-31). Podemos imaginar como um jovem estudante de filosofia que quisesse trabalhar por si próprio, a partir dos vários impasses doutrinais em que os filósofos das escolas do seu tempo se tinham enredado, poderia ficar fascinado pelo brilho destas afirmações sucintas que lhe devem ter surgido como o aperfeiçoamento do movimento socrático-piatónico na interinidade da existência.

O símbolo helkeín é peculiar a João: não ocorre em mais nenhuma passagem do Novo Testamento. Nas epístolas de Paulo, de tal modo predomina a componente do conhecimento no movimento e a luminosidade da sua consciência que o pathos da atracção é simbolizado como um acto divino de conhecimento que agarra forçosamente o homem e ilumina a sua existência. Escreve Paulo em 2 Cor. 4-.6: “O Deus que disse ‘deixai que a luz brilhe nas trevas’ é o Deus que brilhou nos nossos corações para os tornar luminosos (ou resplandecentes, photismos) com o conhecimento (gnosís) da glória de Deus, a glória na face do Cristo.,,[6][14] A glória radiante na face do Cristo é o photísmos na face do homem que viu a Deus. Moisés ainda tinha de a esconder com um véu até que ela desaparecesse; este véu, que cobria de letras escritas o Antigo Testamento, foi retirado do Novo Testamento, escrito pelo espírito (pneuma) no coração; “e nós, com os nossos rostos descobertos, reflectindo o brilho do Senhor, todos crescemos mais e mais brilhantes à medida que nos voltamos para as imagens que reflectimos”[7][15] (2 Cor. 3:18).

Que a resplandecência do conhecimento no coração tenha a sua origem na acção divina é o que se afirma explicitamente em passagens como 1 Cor. 8:1-3:

“Nós sabemos que “todos nós possuímos conhecimento (gnosis).” O conhecimento (gnosís) incha, o amor (agape) edifica. Se alguém imaginar que sabe alguma coisa, ainda não sabe como devia saber. Mas se alguém amar a Deus, é conhecido por Ele.”[8][16]

As palavras são endereçados a membros da comunidade Coríntia que possuem o conhecimento” como doutrina mas que o aplicam sem sabedoria como ‘regra de conduta; a tais possuidores da verdade, lembra-se que só o conhecimento que Deus tem do homem poderá formar a existência sem a deformar. Escreve Paulo em aviso semelhante aos Gálatas: “Outrora, quando não conhecíeis a Deus, estáveis encadeados a seres que não eram realmente deuses; mas agora que conheceis Deus – ou antes, que sois conhecidos por Deus, porque quereis regressar a esses espíritos fracos e pobres, tornando-vos seus escravos?[9][17] (Gal. 4:8-9)

As ocasiões que levam Paulo a clarificar a dinâmica da gnosis na existência, diferem muito da situação em que os filósofos clássicos executavam a sua obra diferenciadora. Na segunda epístola aos Coríntios ele quer assinalar o brilho da aliança pneumática inscrita no coração contra a verdade mais compacta e “velada” da Lei de Moisés, usando para tal fim um simbolismo recebido dos profetas; em 1 Coríntios, tem de censurar os “idolótitos”, homens que partilham de comida sacrificado a ídolos, e que sentem segurança no seu conhecimento, porque afinal os ídolos não são deuses; e em Gáiatas, tem de chamar à ordem os crentes que regressaram ao seu culto anterior de espíritos elementares. Esta diferença óbvia de contexto cultural, contudo, não deve obscurecer o facto que Paulo tenta articular a dinâmica do conhecimento existencial, comprimida por Aristóteles na fórmula que o pensamento humano (nous) em busca do fundamento divino do ser é movido (kineitai) pelo Nous divino que é o objecto do pensamento (noeton) do nous humano (Metafísíca 1072a 30ss.).

O cerne noético, portanto, é idêntico tanto na filosofia clássica como no movimento do evangelho. Existe o mesmo campo de atracção e contra-atracção, o mesmo significado de salvar a vida seguindo a atracção do cordão de ouro, a mesma consciência de existência numa realidade interina de participação humano-divina, e a mesma experiência da divina realidade como o centro da acção no movimento da questão para a resposta. Ademais, existe a mesma consciência de descobertas, novamente diferenciadas, sobre o significado da existência; e, em ambos os casos, esta consciência constitui um novo conjunto de tipos humanos históricos, descritos por Platão: primeiro, o homem espiritual (daimoníos aner) no qual o movimento ocorre; segundo, o homem do tipo anterior e mais compacto de existência, o mortal (thnetos) no sentido homérico; e terceiro, o homem que reage negativamente ao apelo do movimento, o homem ignorante ou insensato (amathes).

Apesar do cerne noético, a dinâmica espiritual do evangelho, modificou-se radicalmente através da experiência de uma irrupção divina extraordinária na existência de Jesus. Esta irrupção em que Jesus se torna o Cristo, é expressa pelo autor da Epístola aos Colossenses nas palavras: “Porque nele encarnou a plenitude da realidade divina (theotes)”[10][18] (2-.9). Na sua plenitude completa (pan to plerorha), a realidade divina só está presente em Cristo que, em virtude desta plenitude, “é imagem (eikon) do Deus invisível, o primogénito de toda a criação”[11][19] (1:15). Todos os outros homens não têm mais do que a parcela comum desta plenitude (pepleromenoi) ao aceitarem a verdade da sua presença completa no Cristo que, pela sua existência icónica, é “a cabeça de todo o poder (arche) e autoridade (exousía),[12][20] (2-10). Algo em Jesus deve ter impressionado os seus contemporâneos como uma existência tão intensa na metaxy que a sua presença corpórea, o somatikos da passagem, parecia já estar completamente permeada pela presença divina.

A passagem é preciosa, porque o autor conseguiu transmitir a sua impressão sem recurso a símbolos anteriores e mais compactos, tais como o “Filho de Deus”, que não exprimiriam suficientemente a nova experiência diferenciada. Isto terá exigido um esforço consciente da sua parte, porque o termo theotes é um neologismo forjado para esta ocasião. Às várias traduções do termo como divinidade, divindade ou deidade que transmitem a implicação de um deus pessoal, prefiro realidade divina porque transmite melhor a intenção do autor em denotar uma realidade impessoal, que permite graus de participação na sua plenitude, embora permaneça o Deus para além da interinidade da existência. Se o autor pertencesse à “escola” Paulina, poderíamos compreender o seu símbolo theotes como uma tentativa para ultrapassar algumas imperfeições no símbolo de Paulo – the6tes. Em Rom. 1:18 ss., Paulo fala dos homens que suprimem a verdade de Deus devido à impiedade e injustiça: “Porque o que pode ser conhecido sobre Deus (to gnoston tou theou) é manifesto neles, porque Deus o tornou manifesto a eles. Porque sempre, desde que o cosmos foi criado, a realidade invisível de Deus podia ser compreendida pela mente (nooumana) nas coisas que estavam criadas, ou seja, o seu poder eterno (dynamis) e divindade (the@tes).”[13][21] Paulo é um homem bastante impaciente. Quer ver imediatamente diferenciada a realidade divina da experiência primária do cosmos como a divindade transcendente ao mundo que encarnou em Cristo; considera indesculpável que a humanidade tivesse que atravessar uma fase na história em que o Deus imortal fosse representado por imagens de “homens mortais, aves, quadrúpedes e répteis”; e só pode explicar este horror mediante a supressão deliberada de uma verdade bem conhecida. Ademais, devido ao seu menosprezo judaico para com ídolos pagãos, considera o fenómeno histórico do mito cosmológico como responsável por casos de vida dissoluta que observa à sua volta e entende que a continuação da adesão a esses mitos, com a consequente dissolução moral, é o castigo de Deus para os que anteriormente praticavam a idolatria (Rom. 1:26-32). Esta confusão zelosa de problemas tinha de ser desemaranhada; de facto, o autor de Colossenses extraiu da passagem Paulina a distinção entre os divinos “invisíveis” e os “visíveis” das experiências participativas; distinguiu entre o Deus invisível, experimentado como real para além da metaxy da existência, e o theotes, a realidade divina que penetra a metaxy no movimento da existência.

A distinção, é certo, fora já feita em Teeteto 176b, onde Platão descreve como propósito da fuga humana aos males do mundo, a aquisição da homoíosis theo kata dynaton, um tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possível. Contudo, embora a homoiosís theo de Platão seja o equivalente exacto à penetração do theotes no autor de Colossenses, o homem espiritual de Platão, o daímonios aner, não é o Cristo dos Colossenses, o eíkon tou theou. Platão reserva a existência icónica para o próprio cosmos: o cosmos é a imagem (eikon) do Eterno; é o Deus visível (theos aísthetos) na imagem do Inteligível (eikon tou noetou); existe um único céu nascido (monogenes) cujo pai divino é tão recôndito que seria impossível manifestá-lo a todos os homens (Tímeu 28-29,92 c). Na contraposição entre o monogenes theos do Timeu de Platão a João 1: 1 8, torna-se visível o muro que o movimento da filosofia clássica não consegue quebrar, para alcançar as intuições peculiares do evangelho.

O obstáculo a uma nova diferenciação não é um defeito peculiar do movimento clássico, tal como uma limitação da razão natural sem a ajuda da revelação, tópico por vezes ainda explorado por teólogos que deveriam conhecer melhor o que se passa; o obstáculo é o modo cosmológico de experiência de e simbolizarão, dominante na cultura em que o movimento ocorre. A experiência do movimento tende a dissociar a realidade cósmico-divina da experiência primária, no ser contingente das coisas e no ser necessário do Deus transcendente ao mundo; e uma cultura em que a sacralidade da ordem, tanto pessoal como social, é simbolizada por deuses intra-cósmicos, não facilmente cederá o lugar ao movimento do theotes cuja vitória implica a dessacralização da ordem tradicional. Ademais, a rearticulação e re-simbolização da realidade em geral de acordo com a verdade do movimento, é uma tarefa espantosa que exige séculos de esforço sustentado. É possível discernir um forte movimento existencial que impele à compreensão da divindade escondida, o agnostos theos, dos deuses intracósmicos, por exemplo, nos Hinos Egípcios a Amon no século XIII a.C., aproximadamente na mesma época em que Moisés quebrou com a mediação faraónica da ordem divina na sociedade, mediante o esforço de constituir um povo na presença imediata de Deus; e, contudo, foram precisos treze séculos de história, e os acontecimentos abafadores de sucessivas conquistas imperiais, para tornar o povo receptivo à verdade do evangelho. Depois, o movimento poderia abortar social e historicamente, se o movimento clássico, continuado pelos pensadores helenísticos não fornecesse o instrumento noético para a resimbolização da realidade, para além da área restrita do próprio movimento conforme à verdade do evangelho; e mesmo quando, o evangelho se tornou socialmente eficaz, favorecido por esta constelação cultural, foram precisos outros doze séculos para que o problema do ser contingente e do ser necessário fosse articulado pelos pensadores escolásticos. Se a “revelação” deve ser levada a sério; se tal símbolo pretende exprimir a dinâmica da presença divina no movimento, o mistério do seu processo na história assumirá proporções mais formidáveis do que teve em Paulo que lutava, em Romanos 9-1 1, com o mistério da resistência de Israel ao evangelho.

A dinâmica do processo ainda está imperfeitamente compreendida devido às espectaculares roturas históricas que deixam, na sua esteira, uma sedimentação de símbolos do Antes-e-Depoís que distorcem gravemente a realidade, quando utilizados na interpretação da história cultural: antes da filosofia, houve o mito; antes do Cristianismo, os ídolos pagãos e a Lei Judaica; antes do monoteísmo, houve o politeísmo e antes da ciência moderna, claro, houve superstições primitivas tais como filosofia e evangelho, metafísica e teologia, que, hoje em dia, nenhuma pessoa que se respeite deveria repetir. Nem todos são tão tolerantes e inteligentes como o Jesus que afirmou: “Não penseis que eu vim para dissolver a lei e os profetas; eu não vim para dissolver (katalysal) mas para cumprir (plerosai)”[14][22] (Mat. 5:17). Esta sedimentação de fenótipos ignora que, em termos de registos históricos, a verdade da realidade está sempre totalmente presente na experiência humana e o que muda são os graus de diferenciação. As culturas cosmológicas não são um domínio de idolatria primitiva, politeísmo ou paganismo, mas campos muito sofisticados de imaginação mitica, capazes de encontrar os símbolos próprios para os casos típicos ou concretos da presença divina num cosmos em que a realidade divina é omnipresente. Ademais, os casos simbolizados não são experimentados como raridades sem relação entre si, formando cada um uma espécie de realidade por si só, mas são decididamente experimentados como “os deuses”, ou seja: manifestações da realidade única que constitui e envolve o cosmos. Esta consciência da unicidade divina por detrás da multidão dos deuses, exprime-se em construções mito-especulativas de teogonias e cosmogonias que simbolizam compactamente tanto a unidade da divindade como a unidade do mundo que ele criou. Podemos dizer que os deuses da cultura cosmológica têm uma forma de presença divina universal específica e um fundo da mesma presença universaldivina; são divindades específicas que partilham da realidade divina universal.

Irei agora situar o movimento do evangelho no contexto do processo revelatório em que o Deus Desconhecido se separa das divindades cosmológicas.

Nos já mencionados Hinos a Amon da XIX Dinastia, Amon “surgiu no princípio, de modo que a sua natureza misteriosa é desconhecida.”. Nem sequer os outros deuses lhe conhecem a forma de “deus maravilhoso e multiforme.” “Todos os outros deuses o celebram para se enaltecerem a si próprios através da sua beleza, porque ele é divino. O próprio Ré está unido com o seu corpo. ” É demasiado misterioso para que a sua majestade se possa manifestar, é demasiado grande para que o homem se possa interrogar sobre ele, demasiado poderoso para que possa ser conhecido”.[15][23] Por trás dos deuses conhecidos emerge, assim, o deus desconhecido de que eles derivam a respectiva realidade divina. Este Amon desconhecido, contudo, embora em vias de se diferenciar do Amon específico de Tebas, não é um deus a mais no panteão cosmológico, mas o theotes do movimento que, no processo posterior de revelação, pode ser diferenciado até à revelação culminante em Cristo. Ademais, uma vez que o deus desconhecido não é o novo deus mas a realidade divina experimentada como já presente nos deuses conhecidos, o processo revelatório necessariamente se tornará uma fonte de conflitos culturais, à medida que progride a diferenciação da sua verdade. “Guerra e batalha,” são as palavras de abertura do Górgias, provocados pelo aparecimento de Sócrates; e Jesus diz: “Eu vim para incendiar a terra… Pensais que eu vim para trazer a paz à terra? Não, digo-vos, mas antes a espada”[16][24] (Lucas 12:49,51). Os homens empenhados no movimento tendem a elevar a realidade divina experimentado ao nível de um deus à imagem dos deuses conhecidos e a opôr este deus verdadeiro aos deuses específicos, demovidos do estatuto de falsos deuses; por outro lado, os crentes cosmológicos, certos da verdadeira divindade dos respectivos deuses, acusarão de ateísmo os portadores do movimento ou, pelo menos, de subvenção da ordem sacral da sociedade através da introdução de novos deuses. É este conflito que fundamentalmente opõe Celso, no seu ataque ao Cristianismo, e Orígenes no seu Contra Celsum.

Os Hinos de Amon são o documento representativo do movimento na fase em que o esplendor dos deuses cosmológi’cos já se tornou derivado, muito embora os próprios deuses não se tenham, ainda, tornado falsos. Setecentos anos mais tarde, no equivalente do Deutero-lsaías aos Hinos de Amon (Is. 40-1225), os deuses tornaram-se ídolos feitos pelo homem que já não partilham da realidade divina; entretanto, o deus desconhecido adquiriu o monopólio da divindade. O autor luta nitidamente com a dinâmica da nova situação. Por um lado, o seu deus está sozinho consigo próprio e com o seu ruach desde o princípio (40-.12-14), tal como Amon é desconhecido; por outro lado, é um deus conhecido que admoesta os homens por o não conhecerem como deviam, muito à maneira de Paulo, admoestando os pagãos por não conhecerem Deus, já revelado na sua criação:

“Não conhecestes? Não ouvistes?

Não vos disseram desde o princípio? Não compreendestes desde a criação da terra?[17][25] (40:21)

Tanto os autores dos Hinos a Amon como o Deutero-isaías reconhecem o “No-Princípio” como o verdadeiro critério da realidade divina; neste ponto não existe, de facto, diferença entre os documentos aqui debatidos e o prote arche de Aristóteles, na especulação sobre a cadeia etiológica na Metafísica; mas se nos Hinos de Amon a tónica recai sobre a causa sui no Princípio divino, no Deutero-isaías recai sobre a causa rerum, embora nenhum dos casos negligencie o outro componente do Princípio. A causa sui é o que torna em agnostos theos a realidade divina diferenciada do movimento; a causa rerum é o que a torna em deus conhecido através da criação. Quando a realidade divina emerge do movimento, na profecia do Deutero-lsaías, o Yahweh de Israel regressa como o Deus de toda a humanidade:

“Que criou os céus e que os alargou, Que estendeu a terra e o que dela vem, Que dá o espírito ao povo (am),e espírito àqueles que se movem.”[18][26] (42:5)

E o profeta, confundindo-se com o próprio Israel, tornou-se o Servo Sofredor, enviado por Deus:

“Como aliança para o povo (am), uma luz para as nações, para abrir os olhos que estão cegos, para trazer os prisioneiros da caverna, da prisão em que estão sentados na escuridão.[19][27] (42:6-7)

O tesoureiro da rainha da Etiópia viajara até Jerusalém para prestar culto. No episódio de Actos 8:26-40 encontramo-lo no caminho de regresso, na estrada de Gaza, sentado na sua carruagem, reflectindo no passo do Deutero-isaías: ” Tal como um cordeiro ele foi levado ao sacrifício…”[20][28] Um anjo do Senhor enviou o apóstolo Filipe para o encontrar: “Compreendes o que estás a ler?’,[21][29] ,COMO posso” replicou o etíope, “sem alguém que me guie?… Acerca de quem, por favor diz-me, fala o profeta: acerca dele ou de outra pessoa?’,[22][30] Então, Filipe começa por falar da história dos apóstolos e a partir desta passagem explica-lhe a Boa Nova (evangelisato) de Jesus. A revelação do Deus Desconhecido, através de Cristo, em continuidade consciente com o processo milenar de revelação que esbocei, é de tal modo o centro do movimento do evangelho que pode ser chamado o próprio evangelho. O Deus de João 1:1 ss. que no princípio está a sós com o seu Logos, é o Deus do Deutero-isaías (40:13), que no princípio está a sós com o seu ruach; o Verbo que brilha omo uma luz nas trevas (João 1:5, 9:5) é o Servo Sofredor que é dado como uma luz às nações, para extrair da prisão aqueles que se sentam na escuridão (isaías 42-.6-7); e em 1 João 1, a luz que estava com o Pai, manifestando-se a si através do Cristo seu Filho, constitui a comunidade daqueles que querem andar na luz. O próprio Deus Desconhecido, então, é tematizado em Actos 17:16-34, no discurso do Areópago atribuído por Lucas a Paulo. Ao louvar os Atenienses por terem dedicado um altar ao Agnostos Theos, o Paulo dos discursos assegura-lhes que o deus que eles cultuam, sem saber quem é, é o próprio deus que ele lhes veio proclamar (Katangello). Em termos do Deutero-lsaías, descreve-o como o deus que criou o mundo e tudo o que nele está e, portanto, em nada igual aos deuses dos altares feitos à mão; (Isaías 40:12,18-20) é, sobretudo, Deus da humanidade a quem deu vida e espírito (isaías 42:5). Está suficientemente perto de nós para ser encontrado, porquê “nele vivemos e nos movemos e temos o nosso ser.” Perdoará a ignorância com que o representámos, no passado, com ídolos feitos pelo homem mas, agora, ordena (apangellei) a todos que se arrependam (metanoein); todos são chamados a conhecê-lo como o verdadeiro deus que julgará os homens através do homem que ele ressuscitou dos mortos. Mais poderia ser acrescentado, tal como Nunc dimittis de Lucas 2:29-32, mas a passagem citada é suficiente para estabelecer o Deus Desconhecido como o deus que é revelado através de Cristo.

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[2][10] “Pai justo o mundo não te conheceu, mas eu te conheci e estes reconheceram que tu me enviaste. Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles.”

[3][11] “Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo.”

[4][12] “Ora, a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo.”

[5][13] “Jesus fez, diante de seus discípulos, muitos outros sinais ainda, que não se acham escritos neste livro. Estes, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida e seu nome.”

[6][14] “Porquanto Deus, que disse: Do meio das trevas brilhe a luz!, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo.”

[7][15] “E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela acção do Senhor, que é Espírito.”

[8][16] “No tocante às carnes sacrificados aos ídolos, é inegável que todos temos a ciência exacta. Mas a ciência exacta incha; é a caridade que edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber. Mas, se alguém ama a Deus, é conhecido por Deus.”

[9][17] “Outrora, é verdade, não conhecendo a Deus, servistes a deuses, que na realidade não o são. Mas agora. conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus, como é possível voltardes novamente a estes fracos e miseráveis elementos aos quais vos quereis escravizar outra vez?”

[10][18] “Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (… )”

[11][19] “Ele é a imagem do Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura, (…)”

[12][20] “Ele é a Cabeça de todo o Principado e de toda a Autoridade.”

[13][21] “Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou. Sua realidade invisível – seu eterno poder e sua divindade – tornou – se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa.”

[14][22] “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, (… )”

[15][23] Ancient Near Eatem Texts related to the Bible (ANET), ed. Pritchard, 1950, p. 368.

[16][24] “Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso! Pensais que vim para estabelecer a paz sobre a terra? Não, eu vos digo, mas a divisão.”

[16][25] “Não o sabeis? Não o ouvistes? Não vos foi anunciado desde o princípio? Não compreendestes os fundamentos da terra?”


[18][26] “Assim diz Deus, Iahweh que criou os céus e os estendeu, e fez a imensidão da terra e tudo quanto dela brota, que deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela.”

[19][27] “(… ) eu te pus como aliança do povo, como luz das nações, a fim de abrir os olhos dos cegos, a fim de soltar do cárcere os presos, e da prisão os que habitam nas trevas.”

[20][28] “Como ovelha foi levado ao matadouro;”

[21][29] “Entendes o que estás lendo?”

[21][30] “Como o poderia, disse ele, se alguém não me explicar? Dirigindo-se a Filipe, disse o

Eunuco: “Eu te pergunto, de quem diz isto o profeta? De si mesmo ou de outro?”

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