segunda-feira, 22 de novembro de 2010

GRÃO DE TRIGO

As tentações de Jesus – parte 3
por francisco razzo
por Bento XVI*

A primeira prova de identidade do redentor perante o mundo e para o mundo não deverá ser que Ele lhe dê pão e que acabe com toda a espécie de fome? Durante o tempo da peregrinação pelo deserto, Deus tinha alimentado o povo de Israel com o pão descido do céu, com o maná. Pensava-se então poder reconhecer nisto uma imagem do tempo messiânico: não devia, e não deve, o redentor do mundo provar a sua identidade dando a todos de comer? Não é o problema da alimentação do mundo, e em geral, o problema social, o primeiro e autêntico critério pelo qual a redenção deve ser medida? Pode alguém com direito dizer-se redentor se não satisfizer este critério? Do modo conceituai mais elevado, o marxismo fez disto o cerne da sua promessa de salvação: ele cuidaria para que acabasse toda a fome e que “o deserto se tornasse pão…” “Se és o Filho de D e u s . . .— que desafio. E não se deve dizer o mesmo à Igreja: se queres ser a Igreja de Deus, então te preocupa em primeiro lugar com o pão para o mundo, o resto virá a seguir. É difícil responder a este desafio, precisamente porque insistentemente nos chega e nos deve chegar aos ouvidos e à alma o grito dos famintos. O tema do pão está presente em todo o Evangelho e deve ser considerado em toda a sua amplitude.
Há ainda outras duas grandes histórias na vida de Jesus envolvendo pão. A primeira história é a multiplicação dos pães para os milhares de pessoas que seguiram Jesus até o deserto. Mas por que agora é feito o que antes tinha sido repelido como tentação? Os homens tinham vindo para escutar a palavra de Deus e tinham por isso abandonado todo o resto. E assim, como homens que tinham aberto o seu coração para Deus e para os outros, aqueles podem receber o pão com merecimento. Este milagre do pão envolve três coisas: a primeira é a procura de Deus, da sua palavra, da reta instrução para toda a vida; depois o pão é pedido a Deus; e finalmente a disposição recíproca para a partilha é um elemento essencial do milagre. Escutar Deus torna-se vida com Deus e isso conduz da fé ao amor, à descoberta do outro. Jesus não é indiferente à fome dos homens, às suas necessidades corporais, mas situa tudo isso no contexto correto e confere-lhe a devida ordem.
A segunda história do pão aponta já para a terceira e é preparação para ela: a Última Ceia, que se torna Eucaristia da Igreja e o permanente milagre do pão de Jesus. Jesus mesmo se tornou o grão de trigo que deve morrer, para que dê muito fruto (Jo 12, 24). Ele mesmo se tornou pão para nós, e esta multiplicação dos pães dura inesgotavelmente até o fim dos tempos. Assim compreendemos agora a palavra de Jesus, que Ele retira do Antigo Testamento (Dt 8,3), para com ela repelir o tentador: “O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4,4). A este respeito há uma expressão do jesuíta alemão Alfed Delp, que foi condenado à morte pelos nazistas: “O pão é importante, a liberdade é mais importante, mas o mais importante de tudo é a adoração”. Onde esta ordem dos bens não for respeitada, mas invertida, não haverá nenhuma justiça, não haverá mais cuidado com os homens que sofrem; mas precisamente aí o domínio dos bens materiais será desorganizado e destruído. Onde Deus é considerado uma grandeza secundária, onde pode ser deixado de lado por algum tempo ou por todo o tempo por causa de coisas mais importantes, aí precisamente fracassam essas coisas pretensamente mais importantes. Não é só o desfecho negativo da experiência marxista que o demonstra.
A ajuda do Ocidente para o desenvolvimento com base em princípios puramente técnicos e materiais — que não só deixa Deus de fora, mas também força o homem a d’Ele se afastar com o orgulho do seu saber fazer melhor — foi precisamente o tipo de ajuda que criou o Terceiro Mundo no sentido que hoje se entende. Esta “ajuda” empurrou para o lado as estruturas religiosas, morais e sociais e instaurou no vazio a sua mentalidade tecnológica. Ela julgava poder transformar pedras em pão, mas gerou pedras em vez de pão. Trata-se do primado de Deus.
Trata-se de O reconhecer como realidade, como a realidade sem a qual nada mais pode ser bom. A história não pode ser regulada longe de Deus por estruturas simplesmente materiais. Se o coração do homem não for bom, então nada pode tornar-se bom. E a bondade do coração só pode, em última instância, vir daquele que é bom, que é o bem em si mesmo. Pode naturalmente perguntar-se por que Deus não fez um mundo no qual a sua presença fosse mais evidente; por que Cristo não deixou atrás de si um outro esplendor da sua presença, mais adequado e irresistível Este é o mistério de Deus e do homem no qual não podemos penetrar.
Vivemos num mundo no qual tudo deve ser palpável, e Deus não apresenta nenhuma evidência do que é palpável; Deus só pode ser procurado e encontrado se abrirmos o coração, se nos remetermos ao “êxodo” do “Egito”. Neste mundo temos de nos opor aos enganos das falsas filosofias e reconhecer que não podemos viver só de pão, mas, antes de mais nada, da obediência à palavra de Deus. E somente onde esta obediência for vivida é que cresce a atitude que permite criar pão para todos.

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